segunda-feira, outubro 22, 2007
A Trilogia dos Dragões [3]
[1] A espectacularidade do simples. Nunca tinha visto nenhuma obra de Robert Lepage. Quem me falou dele a primeira vez foi o Carlos Fragateiro, há uma boa dezena de anos, quando regressou do mestrado no Canadá, entusiasmado com a introdução das novas tecnologias no teatro. Sempre o associei por isso a uma profusão de efeitos especiais. São as ideias que fazemos das coisas. Digo isto porque uma das coisas mais fascinantes deste trabalho de Lepage é para mim a forma como ele refresca a narrativa dramática com acções e gestos quase saídos de uma prática de expressão dramática. É o caso das brincadeiras de Françoise e Jeanne, duas amigas inseparáveis que recriam a Rua St-Joseph, as suas lojas, apenas com caixas de sapatos. Abrem uma caixa e é uma nova loja e é um novo jogo de faz-de-conta. Ou o jogo de cartas em que o barbeiro perde a sua barbearia, feito todo ele através de uma sequência ritmíca e de percurssão na tampa de um bidon . Também a forma como nos surge o combóio. Ou o imaginário ringue de patinagem. Ou, já na cena final, o piloto de aviões a simular com o seu próprio corpo o avião. São acções presentes ao longo da peça que produzem um efeito de leveza, já que só conseguem o seu efeito de representação graças à cumplicidade do espectador e este, para a adquirir, vai, inconscietemente, buscar os seus protocolos de leitura infantis, quando, sem algum efeito especial, tudo podia significar tudo . [2] A vida quotidiana na cena. Por outro lado há também um outro tipo de trabalho no sentido da não teatralidade: o trazer para o palco acções e movimentos que não são muito habituais em cena. O andar de mota, de bicicleta, de cadeira de rodas (que de repente se transforma em riquexó), o próprio passeio no imaginário ringue de patinagem, que, para além disso também produzem um sentido ritmico e narrativo, já que são feitos à volta do espaço de representação, marcando uma cadência. [3] A visibilidade no teatro. Ao entrarmos na sala apercebemo-nos que ela está vazia. E verificamos que há uma fila de pessoas que caminha em direcção ao palco, sumindo-se por dentro dele. Ao chegarmos lá vemos o dispositivo. Duas bancadas uma em frente da outra e, entre elas, um corredor cénico. Há uma pequena cabine de madeira, como as das obras, que é o único espaço de ocultação em toda a cena. Mais à frente iremos ver que algum do acompanhamento musical é feito, se bem que de forma não ostensiva, à vista do público. Ou seja, mais um reforço da não teatralidade. O espectador é levado a pensar que a cena surge o mais artesanalmente possível diante dos seus olhos, que não há aquele jogo de esconde-esconde que faz o teatro, do qual o teatro é feito. [4] E agora o senhor multimédia! Para além de uma banal utilização de imagens mais ou menos contextualizadoras em segundo plano, a utilização de meios técnicos no contar da história faz-se principalmente em dois momentos: na apresentação do documentário de um doente e no show de uma cantora diante dos soldados que estão no teatro de guerra. É diferente o trabalho de uma e de outra embora as duas produzam também o mesmo efeito de simplicidade. Só que na primeira, o documentário do doente que se injecta em cena, visa a criação de um simulacro de realidade que é outra forma de tratar a não teatralidade, ou não fosse feita através da exibição de um documentário que tem já ele próprio esse efeito de produção do real. [5] A criação da história. Uma das caracteristicas deste espectáculo é que conta uma história imersa num espaço colectivo através das histórias individuais a que nos vamos agarrando, especialmente à de Françoise e Jeanne, e que nos vão levando por uma viagem, a do drama humano. As duas crianças que sonham com toda a felicidade do mundo vão, bem cedo, conhecer a amargura da vida: Jeanne nunca se irá casar com Bédard, de quem acaba por engravidar, tendo uma filha com atrasos de crescimento que irá educar já como senhora Wong, irá trabalhar numa sapataria, Françoise alista-se no exército e vai ter o seu namoro com um militar, mas apesar destes sonhos incumpridos há uma alegria quando as duas amigas, passados vinte e tal anos, se tornam a encontrar. A história é tecida por refluxos, ora é trazida directamente por protagonistas, ora indirectamente por ligações pouco nítidas, como aquela rapariga filha de uma mulher que não sobreviveu a Nagasaki, ou por Crawford, o sócio do chinês prestamista, e mais tarde o patrão de Jeanne e mais tarde ainda, o interveniente do documentário que concorre a um festival de docs.
No final, como me dizia um amigo com quem fui, a sensação de que tinha vivido uma experiência única, rara.
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