quinta-feira, outubro 18, 2007
Trilogia dos Dragões: a experiência do tempo do ponto de vista do espectador [2]
Para o exterior da sua obra, aquilo que desde logo evidencia Robert Lepage junto do grande público é a duração dos seus trabalhos. Está lá, em forma de informação: " o espectáculo dura seis horas e tem três intervalos, dois de vinte minutos e um de quarenta". É isso que é discutido em primeiro lugar, e muitas vezes em último, por parte do público: "seis horas?!", "não sei se vou aguentar mais...", " vou ver metade e depois vou-me embora.". Ou então outros, como eu, sentaram-se com uma certa expectativa e ansiedade pela celebração a que iriam assistir. Começo por me dar conta daquilo que, no que toca à sua duração, esta experiência realmente foi: entrei às 18h30 e sai eram 00h00. O que quer dizer que o espectáculo no seu todo dura cinco horas e meia, aos quais devo retirar uma hora e vinte, dos intervalos. Restam por isso quatro horas e dez minutos. Se pensar que o espectáculo tem quatro partes, quer dizer que estive cerca de uma hora em cada uma das partes ( a última parte era sensivelmente maior que as três primeiras). Ora quantos de nós não assistiram já a espectáculos de duas horas e meia sem intervalo? E em que esta proposta de estoicismo junto do espectador era apresentada muitas vezes como uma mais valia intelectual do espectáculo?
E porque é que pode ser importante este preâmbulo sobre a duração na análise do espectáculo? Porque uma das condições que Robert Lepage trabalha é exactamente essa, a da duração. Não já no sentido da incomodidade do espectador, como reclamavam algumas propostas experimentais - de facto qualquer dos períodos de tempo são ajustados a uma recepção tranquila, cómoda, concentrada sobre o tempo ficcional e não sobre o tempo real da nossa presença - mas no sentido do espectador ser obrigado a confrontar-se com os seus hábitos de recepção. Cada um de nós teve nesse dia de fazer escolhas de vida que têm a ver com a inusitada duração do espectáculo a que íamos assistir.
Ora, independentemente do trabalho concreto que Lepage opera sobre o tempo narrativo, e podemos de facto encontrar uma razão narrativa para o espectáculo ser assim, é natural que reconheçamos que grande parte dos criadores teatrais contemporâneos cuja produção estética tem alguma ambição estética têm de, em algum momento, trabalhar a condição de recepção. Há uns que trabalham sobre o espaço (e este espectáculo também o faz, o espectador é levado para dentro do palco e é lá que encontra uma plateia, ou seja, se o espectador tivesse algumas dúvidas que as tradicionais convenções do teatro não o iriam ajudar a preparar-se para esta experiência aqui perderia-as mais uma vez) outros sobre as relações com o público, outros através dos sentidos (cheiros, espaço sonoro, visual, proxémica), mas todos eles sentem necessidade de proceder a uma descontextualização /recontextualização prévia do espectador. Se pensarmos um pouco percebemos que é natural que assim aconteça, o estranho é se não houvesse essa intencionalidade. E isso acontece no teatro como acontece na literatura ou nas artes plásticas. É que andamos na vida de história em história, de narrativa em narrativa, de simulação em simulação, de ficção em ficção, e tudo isso faz com que nunca coloquemos um espaço em branco. Há uma narrativa contínua onde vamos integrando as várias histórias que nos contam, que sonhamos, que imaginamos. Sentamo-nos num teatro como já nos sentámos muitas vezes, e pensamos que ver teatro teria de ser sempre assim. Não é, diz-nos Lepage, como o diria qualquer criador teatral minimamente exigente que pretende que o espectador-sabe-tudo comece por, pelo menos, reconhecer que não sabe ainda como decifrar o espectáculo que vai ver. E finalmente, para lá deste trabalho sobre a recepção do ponto de vista da condição estética, há um outro aspecto, o do tempo narrativo: o espectáculo começa com duas crianças e acaba com uma delas já de meia idade avançada (a outra morre, com um cancro). Essa evolução é dado por evidentes trabalhos de caracterização, de representação, mas também pela relação que, através da duração, estabelecemos com a acção. Este entrar e sair permite que sejamos melhor integrados nesta sucessão temporal.
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1 comentário:
Parabéns. O texto está muito bem escrito, e revela muito sobre o espectáculo. Poucas vezes vemos uma reflexão deste género. No dia em que assisti (quarta-feira), o público levantou-se imediatamente para bater palmas; assim que o espectáculo chegou ao fim. Não é assim tão comum. Percebi nesse momento que só ficaram (os buracos na plateia foram-se notando de intervalo para intervalo) os que estavam realmente estavam disponiveis; e foi nesse exacto momento que compreendi a razão pela qual lepage tinha feito tantos intervalos; já que muitas vezes os intervalos pareciam bem mais longos que o póprio espectáculo.
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