quarta-feira, outubro 31, 2007

Paisagem sem título 1

imagem: Celta

Dançar e cantar.
Nunca dancei verdadeiramente com alguma mulher com quem tivesse representado o jogo do amor. Digo representei e toda a gente que, paradoxalmente, me ama, ou amou, sabe que o teatro para mim é um lugar de culto. Que não utilizo a metáfora da representação para diminuir o fazer amoroso. O jogo do amor é um lugar imenso, iconográfico, semiótico, onde se absorve a vida enquanto hermenêutica, quer dizer, enquanto actividade de interpretação, de decifração. O amor é um fazer auto-reflexo. Produz a baba, o suco, o próprio viço. O fel, o veneno. Lança sinais para o fora do mundo e é lá, nesse ser em movimento incandescente, que nos revela o segredo das coisas. Porque é que as células se dividiram, se multiplicaram, se reproduziram? Nunca o saberemos. É por isso que o princípio do amor confunde tanto filósofos, artistas e até, politicos. Só não ilude o homem comum.
Nunca amei nenhuma mulher com quem verdadeiramente dancei.
Porque a dança é o amor antes de chegar à fala, ao intelecto, à aventura da razão. A dança é o propósito universal, o segredo escondido, o ritmo, o batimento da vida. As mulheres com quem dancei, com quem verdadeiramente dancei, amei-as assim, despropositadamente, em atraso ou no avanço do tempo. Amar e dançar é morrer. É como dançar e cantar. Nunca ocorrem no mesmo meridiano. Dançar é coisa do silêncio, da apoteose. Do nascer que há no morrer, da vida que há no big-bang que reproduzes quando ris.
Se um dia encontrares alguém com quem dançar, desenha no chão um risco, no risco um país e faz do teu corpo uma bandeira.
E esvoaça, que é isso que a dança é.

9 comentários:

Anónimo disse...

"...Nunca amei nenhuma mulher com quem verdadeiramente dancei."
não sei como corres o risco de o dizer,tu ó dançarino, vão chover as mensagens tentando saber se foram uma coisa ou outra.
iraquiana

JPN disse...

não vão nada. só tu, terrorista, me levas a sério. me finges levar a sério. esse nome, iraquiana, lembrar-me do medo que senti quando a ouvi pela primeira vez naquela noite em Bagdad, fez-me estremecer. :)

Ana Saraiva disse...

Pode-se chegar a amar alguém depois da dança, precisamente porque se começou a amar... dançando. Ou talvez não, também serve. Não ser o amor como um par de sapatos...

benguela disse...

Assim como cantares, assim dançarás.

Anónimo disse...

Espero que cantes bem...

Anónimo disse...

Bom, se amar-te é paradoxal, está tudo dito...

Anónimo disse...

Um risco, um país, uma bandeira?

Porquê criar fronteiras onde elas não precisam de existir? Queres com isso demarcar o quê?

;)

benguela disse...

Tudo vem a propósito, a quem sabe esperar.

Anónimo disse...

Ela não via a dança assim. A dança era dentro dela, algumas vezes
indiferente, a música insinuando-se devagar, lá longe, outras, num
ritmo infernal.
Outras ainda, silêncio, e nada. Como se o seu centro fosse um caminho
palpável, ora de dor, ora de luz, ora de trânsito infernal.
Sentia-se como se o seu par a levasse, outras não, outras ainda, a
invadisse, tomando conta de tudo.

A ausência é a valsa do desasossego, num rodopio pelo espaço.

Ela sempre a achara graça àquela sensação de tontura que sentia quando
a levavam para uma valsa, um dois três, um dois três... o corpo mole e
tão leve.

Uma pausa. Um intervalo.
Ela sabia que ele estava lá, dançando ainda, sempre em crescendo,
mesmo sabendo que ele o desconhecia. A sua ausência tão presença em
si.
Para ela, o país era ela. E uma bandeira esvoaçando ali tão alto.