terça-feira, outubro 30, 2007
Paisagem sem Título
Abriu-se-me no peito uma dor. Essa dor sou eu. Ou melhor, o meu modo de ser eu. Digo que é dor porque se parece com um enorme vazio que entra devagar, até ao osso do pensamento. Mas depois não dói. Ou pelo menos, eu não a sinto a doer-me. E já nem sei porque é dor. Acho que me habituei a chamá-la dor, a esta solidão. Habituei-me a fugir-lhe. Habituei a fugir-lhe e, nesse arrenego, a chamar-me eu. Mas eu sou tanto esse que foge das imagens - e confesso, que nos últimos tempos as minhas imagens doíam mais pelo lado do irreparável - como aquele outro que agora, na casa vazia, se apercebe que é pelas imagens que será salvo. Eu poderia por exemplo fugir eternamente da casa vazia. Chegar a casa extenuado de cansaço e afogar-me em torpor. Sou relativamente novo e o meu fígado, que tem sido bastante poupado nesse aspecto, ainda aguentaria alguns anos para me poder embebedar e morrer assim devagar num desprezo pelo universo inteiro. Não teria vivido como um poeta, não teria nunca almejado atingir a essência do poema mas morreria como um poeta. É uma morte credível para um tipo como eu, a de um poeta. Eu creio que muitos dos que me lêem esperam que eu seja um poeta. Até, os mais magnânimos, que eu viva como um poeta. Mas fugir eternamente da casa vazia não me convence. Prefiro menos poesia e mais realidade dos sentidos. Gosto por exemplo de me sentar ao fim da tarde na minha rede e ficar a ouvir as vozes amplificadas da capitania, ou um correr manso de uma embarcação. E deixar a tarde ser engolida pelo rio e depois, a escuridão da noite falar de uma redenção dos vivos. Ou, agrada-me pensar em ir para casa e pensar em ir comprar um pepino, um alho francês, uma beringela, cebola, alho, migar tudo muito bem e deitar numa frigideira com azeite a alourar. O som da frigideira e aquele cheiro a azeite quente estão na mesma categoria do Rimbaud que nunca leio, porque chego sempre a desoras e quando me doiem os olhos de cansados. Depois, se compro uma posta de salmão, uma dourada, ou se me deixo ficar apenas por uma noite de vegetais, não importa. Há muito que não tinha essa festa e recomeço nela devagar. Eu não sei como se vive. Sei que não há ânimo sem lugar. Claro que tenho medo, que tenho medos, muitas vezes vivo a dias, e nem é a dias, um dia em cada dia. Mas respiro melhor. Sei que ainda é dor porque tenho alguma dificuldade em reconhecer a festa. Vejo muita solidão. E não são os amigos que circunstancialmente partiram ou os que foram para sempre. Tudo isso alimenta a dor, claro. Mas a solidão só existe no homem ou na mulher que já não sabem o lugar para onde vão, ou melhor, que já não conseguem ver alguma alegria no lugar de onde vieram, todos os lugares acabam como escreveu o Sena, e ainda não têm a clarividência do lugar para onde tendem, uma espécie de purgatório dos aflitos, que é o lugar onde muitas vezes quebram os espiritos. Tenho alguma dificuldade em olhar a vida na sua crueza e dançar sobre o chão de cacos, de pedaços multiformes que me arranham os pés. Eu não sei o que é a vida, ninguém sabe. O que tento não é decifrar o mistério. O que tento é não ser devorado por ele. Filar os pés no chão, fincar os olhos na linha de um horizonte sensível e sobreviver ao embate. Há uma altura da nossa vida em que a solidão é o medo de não termos ninguém. Chegamos no entanto a uma idade que o problema é inverso: temos muita gente e não sabemos o que fazer com elas, as pessoas que temos. Dançar e cantar. Mas com quem verdadeiramente dançar e cantar? Andamos às apalpadelas no escuro. Até o sexo é supranumerário nesta inquietação. Não faltam modalidades para um homem adulto. Tudo isso são variantes do saber, do ter, e isso não resolve nada da dissociação entre um e o mundo onde está. É depois do embate do não saber que surge o instante poético. Antes a poesia, só nos almanaques das feiras de agricultura, nas quadras fáceis do jogos florais ou nos sonetos rebuscados dos poetas das antologias. Falo de um embate, por exemplo, no teatro. Ainda não desisti de fazer da minha vida uma coisa política.
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