quinta-feira, outubro 04, 2007

Perder os sentidos

Sempre que entro numa sala de aula que me recordo dele, Jean Pierre Ryngaret, no Conservatório de Teatro, no Bairro Alto. Estávamos em 1986. Eu trabalhava nas Marionetas de Lisboa e escrevia, naquele registo livre e descomprometido das colaborações do suplemento, no DN Jovem. Tinha conseguido entusiasmar o Manel Dias para a importância de um Encontro de Expressão Dramática no Conservatório - organizado principalmente pelo António Nóvoa, de quem eu era aluno num Curso de Monitores de Expressão Dramática e pelo Carlos Fragateiro - e comprometara-me a entrevistar duas das personalidades que se constituiram como referências fundamentais do movimento de expressão dramática português. Uma delas foi a Gisele Barret, um poço de ternura e de afabilidade, a outra era Jean Pierre Ryngaert. Ryngaert, autor de livros editados entre nós como o jogo dramático no meio escolar, análise do texto teatral, é um encenador, autor, professor e teórico teatral fascinante, aliando, no seu trabalho de atelier sobre o jogo dramático, a sua dimensão interpelativa, à pragmática. Mas era também um rochedo - aliás, ele olhava-me com uma certa sobranceria - para um rapaz, eu tinha vinte e quatro anos, que julgava que por ter um gravador numa mão e uma pergunta na outra tinha o mundo rendido à sua passagem.
- Não sei porque hei-de contar a minha vida em cinco minutos. Para ir mais longe é preciso tempo. - respondeu-me ele a uma pergunta que lhe tinha feito.
Lembro-me que já estava no final da entrevista, já estava a desligar o gravador, a pensar no trabalho de transcrição, estávamos a falar da sua vida, naquele dia tinham rebentado bombas em Paris, quando ele me diz:
- A verdade é que eu neste momento estou completamente desesperado.
Ao princípio pensei que tinha percebido mal:
- Desesperado?
- Sim, a questão principal é saber como vou continuar a viver. Perdi o sentido disto.
Eu ainda não sabia o que podia ser uma tristeza na vida de uma pessoa. Já tinha sido triste, provavelmente nunca se é tão triste como na infância ou na juventude, aí ainda experimentamos a dor e a morte sem qualquer recuo, à séria, mas não sabia, quer dizer, não o sabia na pele, no sentir, que é onde se sabem realmente as coisas, não sabia que, por exemplo, uma dor pode matar. Por isso aquilo parecia-me estranho. De que é que me falava este homem? Perguntei-lhe, tentando parecer o mais inteligente que conseguia, era decisivo para ele ter confiança em mim:
- E então como é que fazes?
- Não sei. Provavelmente o continuar a fazer este trabalho, o dar aulas, o encontrar-me com pessoas é uma forma de responder a isso, mas a verdade é que estou totalmente desesperado.
Hoje sempre que entro numa sala de aula lembro-me disso. Eu na altura tinha vinte e quatro anos e pensava que se um dia tivesse um desespero assim não seria capaz de entrar numa sala de aula, de enfrentar uma plateia. E ao mesmo tempo tinha essa visão redentora dos palcos e do estrado na sala de aulas. Lugares onde o homem desesperado não entrava e assim, lugares onde o desespero não cabia. Vinte anos depois, tenho mais ao menos a idade que o Ryngaret tinha quando com ele me cruzei a primeira vez, descubro que não é assim. Transportamos as nossas angústias e desespero sempre connosco, por vezes de uma forma mais epidérmica, outras na pele de dentro. E é muito mais tranquilizadora, do que eu alguma vez julgava que poderia ser, esta ideia de que não há lugares a salvo do desespero de estarmos continuamente a perder o sentido.

1 comentário:

Devagar disse...

Meu amigo, meu mestre (incofesso). Materializaste tudo o que fiz nestes dois anos de percurso lado-a-lado, resgatar-me por breves instantes, do abismo que sempre revestiu o meu desespero.

Valeu...