Sempre que entro numa sala de aula que me recordo dele, Jean Pierre Ryngaret, no Conservatório de Teatro, no Bairro Alto. Estávamos em 1986. Eu trabalhava nas Marionetas de Lisboa e escrevia, naquele registo livre e descomprometido das colaborações do suplemento, no DN Jovem. Tinha conseguido entusiasmar o Manel Dias para a importância de um Encontro de Expressão Dramática no Conservatório - organizado principalmente pelo António Nóvoa, de quem eu era aluno num Curso de Monitores de Expressão Dramática e pelo Carlos Fragateiro - e comprometara-me a entrevistar duas das personalidades que se constituiram como referências fundamentais do movimento de expressão dramática português. Uma delas foi a Gisele Barret, um poço de ternura e de afabilidade, a outra era Jean Pierre Ryngaert. Ryngaert, autor de livros editados entre nós como o jogo dramático no meio escolar, análise do texto teatral, é um encenador, autor, professor e teórico teatral fascinante, aliando, no seu trabalho de atelier sobre o jogo dramático, a sua dimensão interpelativa, à pragmática. Mas era também um rochedo - aliás, ele olhava-me com uma certa sobranceria - para um rapaz, eu tinha vinte e quatro anos, que julgava que por ter um gravador numa mão e uma pergunta na outra tinha o mundo rendido à sua passagem.
- Não sei porque hei-de contar a minha vida em cinco minutos. Para ir mais longe é preciso tempo. - respondeu-me ele a uma pergunta que lhe tinha feito.
Lembro-me que já estava no final da entrevista, já estava a desligar o gravador, a pensar no trabalho de transcrição, estávamos a falar da sua vida, naquele dia tinham rebentado bombas em Paris, quando ele me diz:
- A verdade é que eu neste momento estou completamente desesperado.
Ao princípio pensei que tinha percebido mal:
- Desesperado?
- Sim, a questão principal é saber como vou continuar a viver. Perdi o sentido disto.
Eu ainda não sabia o que podia ser uma tristeza na vida de uma pessoa. Já tinha sido triste, provavelmente nunca se é tão triste como na infância ou na juventude, aí ainda experimentamos a dor e a morte sem qualquer recuo, à séria, mas não sabia, quer dizer, não o sabia na pele, no sentir, que é onde se sabem realmente as coisas, não sabia que, por exemplo, uma dor pode matar. Por isso aquilo parecia-me estranho. De que é que me falava este homem? Perguntei-lhe, tentando parecer o mais inteligente que conseguia, era decisivo para ele ter confiança em mim:
- E então como é que fazes?
- Não sei. Provavelmente o continuar a fazer este trabalho, o dar aulas, o encontrar-me com pessoas é uma forma de responder a isso, mas a verdade é que estou totalmente desesperado.
Hoje sempre que entro numa sala de aula lembro-me disso. Eu na altura tinha vinte e quatro anos e pensava que se um dia tivesse um desespero assim não seria capaz de entrar numa sala de aula, de enfrentar uma plateia. E ao mesmo tempo tinha essa visão redentora dos palcos e do estrado na sala de aulas. Lugares onde o homem desesperado não entrava e assim, lugares onde o desespero não cabia. Vinte anos depois, tenho mais ao menos a idade que o Ryngaret tinha quando com ele me cruzei a primeira vez, descubro que não é assim. Transportamos as nossas angústias e desespero sempre connosco, por vezes de uma forma mais epidérmica, outras na pele de dentro. E é muito mais tranquilizadora, do que eu alguma vez julgava que poderia ser, esta ideia de que não há lugares a salvo do desespero de estarmos continuamente a perder o sentido.
1 comentário:
Meu amigo, meu mestre (incofesso). Materializaste tudo o que fiz nestes dois anos de percurso lado-a-lado, resgatar-me por breves instantes, do abismo que sempre revestiu o meu desespero.
Valeu...
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