quinta-feira, outubro 04, 2007
Brincarmos às mortes
Ontem, estávamos no ensaio, uma actriz falha o cruzamento com um actor. É uma pequena brincadeira. A meio de um diálogo entre outros dois, ela cai, suspirando, como se de repente morresse. É uma morte a brincar. Cai nos braços de uma colega, como naqueles jogos de confiança. Depois rola pelo chão, empurrada por esta. Eu fui um pouco duro com a actriz. Não por ter falhado, mas por ter tido uma atitude momentânea de saída do jogo. Sou muito sensível à perda de interioridade dos actores. Aos actores que dentro de cena saiem do seu papel se não estão a falar ou a fazer algo que estava previamente marcado. Em cena não há figurações. Tudo o que está disponível à interpretação do público geme, é alma, significa, é presença, e enquanto matéria disponível à significação ou participa solidariamente na teia narrativa, ou distrai, e se constitui como fuga por onde o espectador se desvincula daquele compromisso que estabelece, de forma implícita, com o espectáculo. Disse-lhe que ía dizer-lhe aquilo uma única e última vez e que depois retiraríamos aquele movimento da cena. Talvez por isso a actriz que estava na contracena com ela sentiu-se também implicada, cúmplice, com a outra actriz e, no movimento em que esta tinha de rolar, acompanhou-a de uma outra forma, empurrando-a com as mãos e ficando, no momento de cruzamento com outro personagem, ajoelhada diante da outra. Este ajoelhar, este ficar ali, enriqueceu a cena. Quando vamos para repetir incorporamos a cena na representação e trabalhamo-la como se fosse o momento em que aquelas actrizes "brincam às mortes". A expressão saiu-me assim, e quando a repito uma outra actriz ri, repete "brincar às mortes". Vai para dizer que este jogo não existe, quando se apercebe que é isso que andamos aqui a fazer há uma data de tempo. A brincarmos às mortes.
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