Estou a tentar sobre este assunto escrever com silêncios entre as palavras. Por vezes alongo-me muito, tenho consciência disso. É uma pressa que sempre tive quando me sento a escrever. Como se as palavras fossem acabar, como se eu me fosse cansar delas, como se o pensamento viesse de um jorro e se pudesse escapulir enquanto escrevo. Talvez não seja assim. Talvez o meu medo de que o pensamento surja seja mais um medo de reiventar o pensamento, de o misturar com os outros, de o libertar do cárcere da razão. Fui, como a maior parte de vós, educado na escola racionalista. Aí o jogo argumentativo desenrola-se a partir da ideia de que cada um tem um quinhão de razão, o seu capital de razão, com o qual tem de (con)vencer o outro da sua razão. É um jogo global, praticado tanto nos mais pequenos como nos maiores espaços da nossa vida quotidiana. Este jogo leva tão a sério esta premissa que, para garantir a eficácia da vida em sociedade, foi necessário juntar-lhe outra fórmula: a bem ou a mal. À primeira convencionou-se chamar arte da diplomacia. À segunda, a da guerra. Entretanto, porque este paradigma racionalista nos iria levar, mais demorada ou mais apressadamente, ao extermínio, o que seria bem pouco razoável, criámos a tolerância. Todos tem [a sua] razão foi o paradigma que libertou a nossa maneira de viver da inevitabilidade do belicismo argumentativo. Fui na minha (baixa e alta) juventude um fervoroso adepto da tolerância. A tolerância é uma recomendável escola de virtudes sociais. Aprendemos nela a aprofundar o significado dos verbos escutar, empatizar, compreender, interagir que são fundamentais para melhorar a qualidade da nossa vida em sociedade. É bastante útil quando conseguimos manter o pressuposto fundador da nossa personalidade, o de que cada um tem a sua razão. Só que tem um pequeno poblema. E o poblema é quando chegamos a uma altura da vida - como aquela onde me encontro - onde chegamos a ter mais desconfiança do que nós próprios pensamos do que daquilo que os outros pensam ( o que não é tão estranho como à partida se possa pensar, a razão dos outros serve para governo das suas vidas, enquanto que a nossa serve para o nosso (des)governo). Para essas pessoas dizer-se que cada um tem a sua razão é um momento de sofrimento dilacerante. É como ser homem e ter disfunção eréctil aos trinta e tantos anos quando se espera que as primeiras incursões desse fenómeno só ocorram aos quarenta e picos. Só para passar despercebido é que eu seria capaz de assentir em defender a justeza das minhas ideias. Elas são injustas, más, provisórias e espero, o mais perenes que me seja possível. Só as aguento na esperança de em breve fazer o upgrade de um entendimento outro, que venha de uma inteligência colectiva que não seja necessário trazer comigo, uma espécie de banco de pensamentos aos quais me conecto via wireless. É por isso que escrevo devagar e com espaços entre os posts. E sei que uma espécie de duplo constrangimento pode afectá-los. Escrevo-os assim para que se possa respirar entre posts, para que sejam humildes, para que levantem questões mais do que respostas e provavelmente muitos de vós irão lê-los como arrogantes, como se aspirassem a serem lições, que não argumentam, que não explicam. E eu que só gostava que ficasse bem clara esta ideia de que independentemente do que pensemos sobre a Escola, se queremos chegar a algo de novo nesse campo devíamos começar por entendermo-nos em coisas muito simples, como a tensão inevitável que uma sociedade em transformação faz sobre a educação e de que não podemos querer ver nela o sossego e a tranquilidade que não encontramos no mundo em que vivemos. Nós estamos despedaçados por dentro. Falo por mim. Nasci há quarenta e cinco anos. Havia uma meia dúzia de televisões na Ada-Pera, perto de Mafra. A minha mãe, professora primária, juntou os seus alunos e mais outros amigos meus e deu uma [espécie de ] aula junto ao televisor, quando Neil Armstrong, a preto e branco, esvoaçou no solo lunar. Neste quarenta e cinco anos mudou radicalmente a ideia do que é uma pessoa, do que ela pode ser e isso tem a ver com um frenesim que se abateu sobre o conhecimento. Essa velocidade de angariação de conhecimento desestabilizou a escola, como não podia deixar de ser. Ela deixou de poder garantir o acervo de conhecimento necessário para que a sua transmissão ocorra sem problemas de legitimação. Os exemplos avultam, transversais a quase todos os campos. É muito fácil aquilo que está nos manuais escolares, até pelo processo natural de validação dos mesmos, estar ultrapassado por uma informação que um determinado aluno angariou autonomamente. Como é que se pode garantir a autoridade da escola assim?
Costumo citar muitas vezes uma ideia de António Nóvoa (hoje reitor da Universidade de Lisboa), que há muitos anos me sensibilizou e entusiasmou para o vigor - quer no campo do teatro quer no da educação - da prática de expressão dramática quando escreveu, e cito de memória, que uma das aprendizagens mais importantes que poderíamos fazer era a de que a riqueza da tarefa educativa estava na capacidade de compreender que ela poderia ser feita fora do espaço e do tempo da aula. Era a altura da defesa do fazer extra-escolar, da abertura da escola para a riqueza dos espaços e tempos de troca, de convívio,d e lazer e de experimentação.
Hoje a questão é mais dramática. Já não se trata de defender uma melhor escola. Trata-se de compreender que a tarefa educativa só pode sobreviver se for entendida para lá da escola, enquanto lugar e enquanto tempo. A tarefa educativa só pode sobreviver se for dimensionada no tempo total da vida dos individuos e em todos os lugares onde eles estão. Já não estamos no drama da escola tradicional, quando ela deixou de ser o único lugar de transmissão de conhecimentos. Estamos num tempo de uma escola que está, nas mesmas paredes de há trinta anos, a implodir e a reformar-se todos os dias. A (tentar) adquirir competências, recursos e metodologias que justifiquem que os nossos filhos saiam de manhã para a escola e só voltem à tarde. É claro que esta escola que implode e se reforma todos os dias tende a ficar em suspenso quando o diálogo sobre a educação se dramatiza em torno das relações laborais.
3 comentários:
É um facto que os acontecimentos a que temos assistido se focalizam mais nas questões de forma do que de conteúdo, ou seja, na educação propriamente dita. Simplesmente porque é mais fácil podar ramos do que cortar árvores. E na verdade ninguém parece saber ao certo o que é isso de Educação. Por isso, o que está verdadeiramente em causa é o próprio paradigma da educação. O nosso nem sei se nos serviu muito bem, mas é óbvio que o vigente não serve aos tempos de hoje. Mas como é que se muda um paradigma senão com o tempo? Porque é nesse tempo que se podem mudar mentalidades e assistir ao despertar de atitudes visionárias que permitam avaliar e repensar o legado para as gerações vindouras. As mudanças de fundo são forçosamente graduais, requerem tempo de experimentação e maturação. E uma lesgislatura não tem esse tempo. Fica-se portanto pela poda? Esta é a conclusão mais fácil de se chegar. No entanto, as grandes mudanças nascem das grandes convulsões e se olharmos para tudo isto na perspectiva do "copo meio cheio" e esquecermos o "meio vazio", talvez consigamos antever aqui o primeiro passo no caminho da transformação.
como de costume, é iluminador ler-te. só me parece que o teu assunto não tem nada a ver com as preocupações da grande maioria dos professores da escola pública.
Depois logo manda aquilo que fiquei de mandar para o teatro.
Gostei. A escola fora da escola ... a implosão da família alargada ... o centro e a periferia ... a cidade e o campo ... as ideias ... os saberes ... a autoridade ... a disciplina ... a violência ... o prazer ... a competência ... a pedagogia ... a cidadania ...a escola pública ... O que mais gosto é de ler poesia ... mas na escola não me ensinaram a ler poesia ... O que mais gosto é de organizar o tempo ... talvez na escola tenha aprendido a organizar o tempo ... era o paradigma da escola autoritária ... com gente lá dentro ... que ... às vezes ... cedia á liberalidade ... mas éramos poucos ... muito poucos ... a maioria não chegava a conhecer a dureza dos assentos das carteiras ... nem o cheiro da tinta de aparo ... o problema é que demoramos demasiado tempo a fazer o que é necessário e está à vista de todos que é urgente ...
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