terça-feira, julho 22, 2008

A lição de Ryngaert

Há dezoito anos, no Conservatório de Teatro de Lisboa, nuns encontros de expressão dramática organizados pelo Nóvoa e pelo Fragateiro, entrevistei Jean Pierre Ryngaert para o DN Jovem. Ryngaert, com Gisele Barret, Richard Monod, Pierre Voltz e Daniel Lemahieu era uma das figuras de referência do movimento de expressão dramática portuguesa e tinha alguns livros publicados entre nós. Conversámos sobre jogo dramático. Já contei isto aqui numa outra ocasião, sei lá a propósito de quê: a certa altura, estava a fechar a entrevista, falámos das bombas que rebentavam em Paris nessa altura, a conversa entrincou na vida, na vida verdadeira.
- A verdade é que estou completamente desesperado.
Eu tinha vinte e quatro anos. Pensei em tudo o que pensa um tipo com vinte e quatro anos, que aquilo era fabuloso, que a entrevista ía ficar fantástica. Perguntei-lhe a medo:
- Desesperado, porquê?
- Não sei. O meu problema é que devo encontrar um motivo para continuar a viver.
Disse-me isso com um ar descontraído. É claro que eu não comprendia nada de nada. Perguntei-lhe:
- Mas estes ateliers?
- São uma contradição. Ainda bem. O trabalhar com os outros.
É claro que não lhe fiz mais nenhuma pergunta. Já estava tão emocionado que fui a correr para o Convento dos Cardais onde tinha ensaio das Marionetas de Lisboa e, tão tardalhoco que estava, desgravei esse exacto pedaço da entrevista ao tentar ouvi-la. Não se perdeu muito, ela estava impressa na minha memória. Lembrei-me disso agora porque dezoito anos depois eu tenho a mesma idade de Ryngaert e sei bem o que é esse desespero tranquilo. Perdi o gosto e o gozo de viver. Não sei o que é este mundo, o que faço nele, o que ainda podemos fazer por ele, se podemos fazê-lo, e ainda por cima tenho os meus vivos, aqueles que me trazem à vida (muitas vezes sem perceberem a minha angústia). Estou a preparar um atelier para o Festival de Teatro Lusófono, em Teresina, no Piáui. E sei que ele, como estas palavras, é uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Começo a pensar em cruzar as minhas experiências de construção do personagem na Escola de Enfermagem com a criação dramatúrgica da personagem. E de repente fios que tenho dentro de mim vão, como pequenas trepadeiras, entretecerem-se de sentidos que desconhecia ter guardados dentro de mim. É para mim terrível dizer que perdi o gozo, o gosto de viver, é uma ruptura brutal com a minha história - o João Afonso da Outra Vida está ali às voltas no leitor de cds e começa também a contagiar-me - mas é a maneira que encontro da minha vida, da minha vida ser verdade outra vez. Nesta miséria que é a linguagem e do construirmo-nos e o destruirmo-nos - como dizia o José Caldas numa outra entrevista que lhe fiz (que saudades dele naqueles tempos em que o teatro fervia! ) nós estamos sempre neste vaivém, ora nos estruturamos ora nos desestruturamos - isso basta-me.

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