- Marcelo Min -
"O Estado é bom quando protege as empresas e pérfido quando ampara as pessoas que precisam de amparo. Essa é a velha lógica do capitalismo e tem séculos de existência. A retórica neoliberal sobre a autonomia do mercado é apenas isso, retórica"
Rui Bebiano di-lo com uma simplicidade comovente. Ainda ontem, estávamos em casa da Sarah, falávamos sobre esta máquina de não pensar em que se transformou a sociedade contemporânea, e também de como isso causava perturbações a pessoas que, como eu, se mantinham de alguma forma vinculados à disciplina cartesiana que - com todos os contributos que conhecemos - vigorou até ao fim do milénio passado. Essa máquina tem a sua eficácia no facto da sua acção tender para a sua desaparição e por isso só quando na linha de montagem surge um novo produto - e a crise financeira, como o foi a crise do petróleo, ou a guerra contra o terrorrismo, por exemplo, é também um produto ideológico - é que sentimos, no aquecer dos motores, no rolar das roldanas, das rodas dentadas, que a máquina existe. E o quanto o seu trabalho é devastador para aquilo que, ainda há meia dúzia de anos, chamávamos pensamento.
Dizia ontem, meio a brincar meio a sério, que esta máquina de pensamento nos recoloca num pensamento mitológico. Não é, nem mesmo no exagero da metáfora, o pensamento mitológico do tempo das cavernas. Mas exageros à parte, verificamos o primeiro procedimento da era tecno-mítica: a criação de um pathos que suspende o pensamento. E esse pathos tem uma palavra-chave: crise. Qualquer cidadão da www.terra.com sabe como reagir ao ouvir esta palavra: espera pelas instruções dos especialistas, dos líderes e fazedores de opinião, do que corre por aí e, porque vivemos numa sociedade democrática, há sempre um por que sim e um por que não, a favor ou contra. Mesmo que isso vá contra aquilo que são as nossas intuições, as nossas aprendizagens de vida, a específica localidade do nosso existir.
Por exemplo: a crise financeira anunciada. Todos nós, de uma forma ou de outra, fomos, ao longo dos últimos anos, desenvolvendo uma evidência comum que supera os nossos dispositivos ideológicos de partida: estamos a aproximarmo-nos do ponto do impensável, do inconjecturável. A crise do petróleo levantou um pouco o véu sobre este procedimento. Há uma virtualidade na nossa economia que cria condições diferentes daquelas a que sempre estivémos habituados. Todos nós, mesmo os nossos gurus, fomos formados numa altura em que o valor do dinheiro, a sua materialidade ainda não tinha esta força, e dimensão, espectral que tem hoje. As grandes instituições financeiras americanas que estão a cair são o reflexo disso. O castelo de cartas de um capitalismo financeiro que se metamorfoseia e que até com esta mudança de pele quer especular. Provavelmente grandes instituições financeiras estão agora a germinar-se em vãos de escada de Nova York, nas garagens, nos subterrâneos, com um mero portátil e uma ligação wireless.
Não sei. O que sei é que esta tentativa de me meterem dentro de um pathos global me impede por exemplo de pensar que em circunstâncias normais não verteria uma lágrima sequer pelo desmoronar de um capitalismo financeiro que tem como pressupostos fundamentais para o seu crescimento a instabilidade política, a desigualdade social e económica e a manipulação ideológica (principalmente através da persuasão e da sedução, mas também da ameaça) em torno das condições de superação destas desigualdades.
Nesta tentativa de me integrarem dentro de um pathos global vale tudo: ainda hoje o Correio da Manhã me chamava a atenção para o gigante segurador americano ser o mesmo que tem as apólices do Cristiano Ronaldo. Depois de um banco me ter tentado vender a ideia de que eu podia ter uma conta bancária tão frutuosa como o mago do pontapé na bola, vem o Correio da Manhã tentar explicar às criancinhas - o espectador global é uma pequena grande criança - que estamos todos no mesmo barco.
Não estamos. Nem navegamos no mesmo mar e muito menos estamos no mesmo barco. Imagino agora a angústia daquele jovem tailandês que há meia dúzia de anos guiava um pequeno barco de um resort de luxo e que contava que queria ser outra coisa, ser um economista, e que por isso lia sempre o Financial Times, para saber o estado do mundo, da crise financeira. No outro dia perguntei-me onde estaria agora. Ao ver uma imagem da agitação na bolsa de Nova Yorque pareceu-me ver o seu rosto. Era ele, tenho a certeza. Estava mais magro, não tinha aquela calma e tranquilidade que detinha em quanto remava num lago de Puket mas era ele, tenho a certeza.
5 comentários:
A raiva é enorme.
desculpa lá, mas não concordo com o sumo. Então o amigo é um dos últimos moicanos (perdão, nativo-americanos) da disciplina cartesiana e deixa-se ir na onda escatológica? ....
então o amigo afirma ser esta sociedade contemporânea uma máquina de impensamento, (ex)/implicitando um antes "quando se pensava" - quando, muito provavelmente, nunca na história houve uma quantitativa e qualitativa tamanha elite intelectual - ou estamos a negar, reaccionarios, o desenvolvimento científico (e a ciência não é tecnologia, não é assim?) espantoso de XIX e XX, a negar as transformações sociais e a efectiva ascensão socio-educativa de tantos, as formas de representação política/social/sindical - e como tal a institucionalização do pensamento (na acepção de pensamento político, prospectivo)
Tu gostas bastante, aqui por vezes, e à sombra das oliveiras, de dizer que eu mando bocas. A diferença está aqui, não no sentido de capacidades intelectuais ou formais. As tais bocas que apontas eu resumo-as de modo diferente, são mesmo de formação - olhar a história, e deixarmos as grandes tiradas (in-post, out-post) para outros momentos.
O episódio histórico das últimas duas décadas é clarividente: o fim da época colonial. Primeiro o Japão (um prenúncio, até porque nunca colonizado), depois os "tigres asiáticos", agora as baleias subcontinentais. A sociedade euro-cristã (e seus avatares) sofre o embate: a mobilidade financeira tem custos (e a direita pretensamente liberal não os integrou, até porque é politicamente reaccionaria, de um proteccionismo neo-nacionalista [que muitas vezes matiza a nação em esferas culturais]). Mas pensa a resistência, ainda assim, até porque não abandonou o património imperialista que cruza toda esta sociedade (e não o refiro como uma chaga)
A esquerda euro-cristã falece. Deitou o sumo evolucionista de Marx fora e é adversa da globalização - pois esta põe em causa o compromisso histórico, reaccionario, que permitiu os direitos sociais euroocidentais, à custa da manutenção de uma ordem colonial, da globalização da exploração, da "nacionalização" do capital: o nacionalismo da esquerda não é um epifenómeno da I G.M., é uma constante, e vê-se de caras nas últimas duas décadas. A crítica à "deslocalização" (esse estúpido neologismo) é prova cristalina desse fascismo social da esquerda europeia (a lusa balbucia isso, normalmente com um húmus menos lido)
Finalmente, o debate encerra-se, e daí a necessidade historiográfica de um arquivo bloguístico: a ordem mundial altera-se radicalmente. E as discussões são sobre modelos de família, educação. Atenta na discussõ ideológica constante da esquerda actual: o criacionismo/evolucionismo no mundo euro-cristão da Reforma; o casamento e a reprodução homossexual no mundo católico-luterano. De onde os ortodoxos estão alheios, porventura porque têm a memória histórica da discussão (por mítica metáfora que seja) do Sexo dos Anjos em Constantinopla. - aquilo que eu gosto de chamar "a esquerda que ri".
Mas, e isso é importante, a "sociedade contemporânea" não é o tal complexo católico-luterano. Pensa-se, e muito.
Esta é a boca que te quero mandar. Invectivando o teu reaccionarismo, reflexo das opções que alguns chamam ideológicas mas que nada mais são do que sociais, dos grupos a que queres aderir, suavemente que seja. Reaccionarismo escatológico, claro, como ele tantas vezes o foi na história. Reaccionarismo anti-História, seja na sua recusa, seja na reconstrução a la carte.
Invectiva acompanhada de abraço. Até à próxima
Tu baralhas-me, pá! Estive quase a pensar que tinha dito outra coisa do que afinal tentei dizer.
Em primeiro lugar, quando eu digo vinculado a uma disciplina cartesiana, não estou a dizer sobre a relação que tenho com este vínculo, embora deixe transparecer que dele me advém perturbação. Não sei se entendi bem o que referes como "onda escatológica", penso que te referes mais ao modo geral como escrevo, e sobre isso o que poderei dizer? O que é que eu sei disso, do trabalho que em mim faz o escrever? Ou a própria razão?
Mas deixando o meu caso que para o efeito não tenho importância, e passando à questão da máquina do não pensamento:
antes de mais nada, quando estou a falar de um certo tipo de pensamento reinante até ao fim do milénio passado, estou, como é claro, a integrar todas as brilhantes discursividades que inundaram o XIX e o XX.
depois, não serei o tipo mais preciso no campo da teoria filosófica mas quando falo de disciplina cartesiana, com todos os contributos que lhe conhecemos, estou a integrar todos os que trabalharam sobre a razão e a opô-los a uma nova espécie de pensamento mágico - a que, mais uma vez de forma imprecisa de quem escreve em blogues, quer dizer, atira umas bocas, chamo de pensamento técno-mitico - que suspeito, medre nos dias de hoje.
o mais certo é estar a defini-lo mal. quem sou eu para definir bem alguma coisa que seja?
não consigo enquadrar esta discussão sobre o não pensamento, em qualquer das espécies ideológicas de que tu falas, esquerda, direita, sociedade euro cristã, esquerda euro cristã. e por isso, com grande pena minha, já que merecias mais luta nesse domínio, tenho de ficar por aqui;
o que eu quero dizer entende-se mais pelo lado da filosofia da comunicação do que pelo da filosofia política.
é aí que a minha, provavelmente infeliz, definição de máquina de não pensar, é uma tentativa de desqualificar um tipo de pensamento que se produz e que tem muito vencimento na comunicação dos nossos dias e que permite desastres ideológicos terríveis, como a impossibilidade de, em tempo, os nossos dispositivos políticos democráticos desarticularem ideias propaladas por dispositivos propagandisticos muito fortes.
É claro que se pensa muito. E mais ainda, produz-se muito pensamento. Nas academias, sejam de ciência, de arte, ou de filosofia. Até na blogos. E alguma coisa desse caldo há-de servir para alguma coisa.
Só que não era disso que eu estava a falar: não são das linhas de montagem das fábricas de pensar em que se constituem as diversas academias que sai a criação de um pensamento que está, na minha opinião, desvitalizado. Porque não procede, não honra a proposição da ruptura epistemológica de Bachelard (se calhar troquei o nome, vê lá tu, veio-me agorinha em directo dos nossos Viveiros), ele encalha numa espectacularização do argumento, em que o mais importante é a suspensão do pensamento através da criação de um clima emocional que bloqueia a capacidade de pensar.
E nesse sentido a crise é um instrumento decisivo para o funcionamento do não pensamento. O não pensamento é também uma forma de pensamento e portanto quando dizes que se pensa e muito eu respondo-te em dobro: pensa-se mais ainda. Só que este pensamento não me alegra.
Vai, fico por aqui. Um abraço.
Escatologia? Não no sentido global, estou a falar do teu texto. Vê, o teu requiem por um mundo que morreu:
"...falávamos sobre esta máquina de não pensar em que se transformou a sociedade contemporânea, e também de como isso causava perturbações a pessoas que, como eu, se mantinham de alguma forma vinculados à disciplina cartesiana que - com todos os contributos que conhecemos - vigorou até ao fim do milénio passado. Essa máquina tem a sua eficácia no facto da sua acção tender para a sua desaparição e por isso só quando na linha de montagem surge um novo produto - e a crise financeira, como o foi a crise do petróleo, ou a guerra contra o terrorrismo, por exemplo, é também um produto ideológico - é que sentimos, no aquecer dos motores, no rolar das roldanas, das rodas dentadas, que a máquina existe. E o quanto o seu trabalho é devastador para aquilo que, ainda há meia dúzia de anos, chamávamos pensamento."
Sobre o resto não me quero repetir. Continuaria a dizer que o discurso sobre o "jovem tailandês" é obscurecedor. Melhor dizendo, obscurantista. E a procurar resmungar sobre o que achas da tal sociedade contemporânea que fenece. Ou melhor, sobre o que achas ONDE é a tal sociedade contemporânea que fenece. Mas seria repetição.
"Blogos" e mandar bocas: apesar dos constrangimentos deste meio não me parece necessário que essa seja uma ligação incontornável. Há uma vontade polemista (eu caí nela tantas vezes, não é uma invectiva) que acaba por ser isso [é uma legítima vontade conversacional, mas tem custos]
bom fim-de-semana
Há aqui um equívoco, Zé Flávio e parece-me que ele é a sede principal do teu argumento e se for assim eu associo-me desde já à tua ideia: eu não acho que a sociedade contemporânea esteja a fenecer. Quer dizer, e pronto, lá vem outra vez a retórica escatológica, morrerá e renascerá todos os dias como nós, que celularmente nos renovamos quotidianamente. É claro que está a fenecer, como está a renascer.
E se o traço obscurantista for esse, associo-me desde já há tua ideia.
Repara, a sede do meu argumento é outra (aliás, sempre a mesma, é o único combate neste mundo para que me armei e fiz cavaleiro, Zé Flávio, se algum préstimo encontrares nestas minhas derivas onde lanço mão de tudo o que se mexe para figurar, para animar, para representar será esse):
a de que na forma como hoje se elaboram os grandes discursos argumentativos globais há um "não pensamento" e que é desse não pensamento que eu me atrevi, embora com recurso à imagética escatológica como tu dizes, a tentar descrever o funcionamento
[ e faria algum sentido tentar perceber o que é isto dos grandes discursos argumentativos globais, será uma distorção analítica de um tipo que ainda está agarrado às grandes narrativas modernas? ou será algo emergente, novo, que nasceu do que e onde feneceu o pensamento como ele nos foi ensinado (argumento, crise e superação do paradigma, novo paradigma)?]
abraço
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