segunda-feira, dezembro 15, 2008

A crise dos quarenta

Até nisto me atrasei. É agora, aos 46. Acordo e depois de um banho caprichoso, muito metrosexual, depois de me secar, agarro na máquina de barbear e dou com outro tipo no espelho da casa de banho. Quem é este tipo, o que faz aqui? Porque é que ele me deixa confuso? Devia sentir medo? Aos 21 anos, quando me olhei assim no espelho pela primeira vez senti medo, senti uma solidão danada, pensei, enlouqueci. Vinte e cinco anos depois a mesma cena. O espelho que me perdõe o remake e alguma falta de pachorra para as angústias existenciais dos meus vinte anos. Que se lixem os meus vinte anos! Agora olho para o espelho e já antevejo o momento em que a minha vida se tornará numa daquelas versões dos filmes futuristas, eu a ir para um lado e a minha imagem para outro, ou eu a dizer, espera aí, vai tu, eu vou dormir, vou dormir um sono sem fim, até à terra da alegria, daquele riso farto com que sempre gostei de contaminar o que me rodeia. É isto a crise dos quarenta, gente? Estou mais perto da morte, estou mais perto da minha morte. Estou tão próximo da minha morte como nunca estive, essa é que é essa, não me livro disso nunca mais, dessa sensação de crescente proximidade. A partir de agora estarei cada dia mais perto da minha morte. A bicicleta pedaleira e o vento nos cornos e esta sensação outra vez de ser herói não atrasam a constatação. Estou cada vez mais perto da minha morte. Posso vigiar o colesterol, ir todos os dias à Colmeia ou aos malucos da Rua dos Douradores, pedir hermesetas, ligths e dizer que não aos palmiers tostadinhos da Bijou do Calhariz, beber um copo de vinho tinto à refeição, suprimir sumos, colas, doces, o diabo mais pintado, a verdade-verdadinha, a verdade nua e crua, é que eu estou cada dia que passa mais perto da minha morte. E que os filhos da mãe dos salmos, dos terços, das novenas rezados à força, e ao contrário do que a minha mãe me dizia, não me vacinaram nem me preveniram de nada. Muito menos desta descrença e falta de fé. Aliás, a minha vida, na generalidade, nas partes boas e nas partes más, corre ao contrário de tudo o que a minha mãe me dizia. Como este buraco negro de ter como certo que passei pela vida uma única vez e que dessa única vez não fiz nada senão aumentar a gordura do mundo. Metade de mim, das minhas angústias, dos meus receios, dos meus medos, das minhas falhas sismícas, são directamente porporcionais à relação que tive com o colo materno. No outro dia vi isso como se a minha vida fosse uma radiografia: as minhas invejas, os meus ciúmes, não são porque haja outros melhores do que eu a fazer as coisas que realmente eu quero fazer. Não. Até porque ao lado do puto que ainda hoje chora comigo a ausência de um colo materno há também o tipo, o homem, o gajo, que reconhece que estes sentimentos, decerto desprezíveis e apenas confiáveis ao silêncio e ao segredo de um blogue, o novo confessionário dos não crentes pós-modernos, mais o afastaram daquilo que realmente estava na minha natureza ser; mas dizia eu, é engraçado, não utilizo esta fórmula - o mas dizia eu - há milhares de anos, desde que escrevia no Jovem e queria atenuar o balanço das frases muito longas, aprendi entretanto a escrever com frases mais curtas, cada vez mais curtas, às vezes tão curtas como um silêncio, deve ser um reflexo edipiano, voltaram-se-me as frases longas, boa, assim provavelmente menos inteligível, mais sinuoso, mais segredo, mas dizia eu, vi, como se fosse uma radiografia, que tudo o que em mim é água, estado líquido, dor, parte da mesma fonte: falta de colo materno e a necessidade de sobreviver a isso. É agora aos 46 que o descubro. E digo-o numa altura em que muitas vezes me confronto - e, terrivelmente, obrigo-o a partilhar com os que me estão mais próximos - com o pior de mim, a minha maldade, a minha ruindade, a minha fúria, a minha cólera, a minha ira. Digo-o e acrescento que me sinto um gajo potencialmente bom. Encontro-me com a minha potencialidade de bondade. Sei também, pela beleza que lhe encontro todas as manhãs, que sou um tipo potencialmente bonito. Parece-me bem. Para lá desta estranheza do tipo que, do outro lado do espelho, começa a não perceber que se meteu com o gajo errado, estou cada vez mais forte, estou cada vez mais eu. E mesmo que, como acontece a cada um de nós, cada dia seja um dia mais próximo da morte, antevejo que serão dias, todos eles, cada vez mais, mais felizes, mais harmoniosos. Cada vez mais livres do medo de desagradar, de não ser metade da imagem projectada do que eu penso que os outros pensam de mim. Cada dia que passa mais perto da morte e com menos tempo para merdas. Menos tempo para o mamã dá licença, o quantos passos, cinco à caranguejo, às arrecuas, sim, às arrecuas também se vive, também se morre, se um dia tivesse direito a biografia seriam assim, o meu nome e o subtítulo, a vida e morte de um homem que queria ser um caranguejo. Há uns anos tinha a cabeça cheia de porras e de trampas. A imortalidade, a dor, a angústia, a morte. A imortalidade é quando ele me diz, como ontem me disse, faz-me prisão de braços pai! E eu a fazer-me de distraído, tens muita gente a quem fazer isso, a tua mãe, a mãe não dá, ela é mais fraquinha, faz com o tio J. , ele chama tio ao namorado da mãe, não, a prisão de braços é só para ser feita com o pai. E é isso a imortalidade, o sermos os únicos braços que se cruzam para uma inamovível prisão de braços. Ele nunca conseguiu vencer-me. Há dois anos que anda no judo e que me pede para eu fazer a prisão de braços e há dois anos que nunca conseguiu abrir os meus braços e dizer as palavras-chave, perdeste, pai. Não sei quantos anos vai durar este jogo mas mentalmente, com a antevisão das raposas, já comecei a pensar que no dia em que ele me disser, perdeste pai, é todo um programa de vida, da minha vida, que termina. Nesse dia poderemos começar outro jogo, e outro ainda, e a única coisa que me sobrecarrega de tristeza essa caminhada para a morte em que uma vida, a minha vida, se constitui, é que parece que cada dia estou também mais perto da morte do mundo, do meu mundo, e eu gostaria, pelo meu filho, pelos amigos dele, pelos filhos dele, pela inteligência da vida que lhes deixamos, que o mundo dele fosse tão imortal como o era o dos nossos pais e avós. Não é. Usurámos o mundo e despojámo-lo de muita da sua energia, da sua força, da sua tenacidade. Talvez isso o tenha tornado mais forte, não sei, falta-me ciência e a fé, perdi-a. O próprio planeta onde vivemos é apenas uma pequena parte de um universo onde outras formas de vida podem existir. Não sei. Falta-me ciência no lugar da fé e fé no lugar da ciência. Tenho apenas intuição. Intuio que a morte em que uma vida se constitui é um acto de constituição da alegria, da festa. Estar mais próximo da morte é estar mais próximo da vida, da festa, da alegria. Cada dia mais perto da morte, da minha morte, a imortalidade é isso, um jogo, outro jogo, mais outro jogo ainda. Sem nenhum esperança na vida eterna entrego-me totalmente a este desejo de que a vida pudesse acabar como se termina um post, este post, todos os posts, narrativas self, mais ou menos convulsionadas: com um final, uma ideia de final, um ambiente feliz. É o Natal por aí, mas não é por isso. É até, em tudo, um sentimento fora de época.

10 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Talvez a estranheza queira dizer que durante muito tempo não frequentaste os espelhos :) bjs

Carla de Elsinore disse...

Um abracinho :)

Anónimo disse...

A vida tem este paradoxo, cada dia a mais é um dia a menos que se vive. Talvez seja quando intimamente nos apercebemos que o caminho se encurta, que sentimos a inadiável necessidade de nos libertarmos do que não nos serve, para apenas sermos, para nos cumprirmos, para vivermos em plenitude.

"Antevejo que serão dias, todos eles, cada vez mais, mais felizes, mais harmoniosos."

Um beijo por cada um dos teus dias :-)

Montanha Azul disse...

Nem sempre pensei assim, mas hoje acredito que só podemos estar bem conosco, felizes até, se "atirarmos o passado para trás das costas" e vivermos agradecidos pelo presente que vamos constuindo.

Mónica (em Campanhã) disse...

que fôlego Joaquim, 46 desses que venham muitos. andava há muito tempo longe da bloga e reentrar por um post destes fez-me perceber porque regresso, sempre.

Anónimo disse...

Que texto maravilhoso, pá! Grande abraço, lg

Anónimo disse...

Quando era pequeno vi a minha mae a matar uma aranha... anos mais tarde descobri que nao era uma aranha era o meu tio Arnaldo. E mais... se todos os animais do mundo se alinhassem na linha do equador... o natal e a pascoa calhavam no mesmo dia.

mf disse...

Muito, muito interessante este post em que me revejo... :)

redjan disse...

F...............-se JPN ... BRILHANTE prosa a tua em frente de um espelho que por certo não te importas de partilhar..

Do melhor que já li ......

Anónimo disse...

Também me revi no texto, que está do melhor que tenho lido, é também assim que me sinto mais perto da morte...mas também mais perto da vida.

Blan