terça-feira, março 10, 2009
A Deus o que é de Deus, ao Palco o que é do Palco
Ver aqui algum do trabalho do Palco Oriental.
Lembrar-me-ei sempre daquele sábado à noite em que, depois de assistir à "Peça da Máquina", escrita, encenada e interpretada pelo João Jorge Loureiro (Meirim) para o grupo de Teatro Patolas - um dos resíduos culturais (nem tudo é tóxico nesta vida caramba)activos da intensa agitação cultural lançada nos idos de 75 na zona oriental de Lisboa, no bairro de Marvila - nos cruzámos os três, eu, do grupo de teatro o Buraco, a funcionar no Marítimo de Xabregas, o Vinas, do Roda, um grupo dissidente dos Patolas, e o João Jorge dos Patolas, a falar desta má-sorte de nos primeiros anos da década de 80, querermos fazer teatro naquela zona. Decidimos então que em vez de sermos três grupos desmembrados iríamos juntarmo-nos todos e darmos a cara pelo grupo de teatro mais forte. Era sem dúvida Os Patolas, grupo que já tinha sido dirigido pelo Cândido Ferreira e pelo Horácio Manuel,actores do grupo de teatro O Bando, que tinha trambalhado na animação teatral daquela zona oriental.
Decidimos então arranjar um espaço. Sabíamos de um, ao cimo da Calçada Duque de Lafões (o número 78 se a memória não me atraiçoa, nem vou verificar, estas coisas do lembrar são assim), onde uma associação, o Voo Livre, fazia festas e actividades. Não tinha mais uso senão esse e o de a sala principal ter uns colchões de ginástica de uma colectividade que ficava a meio da rua. Servia também para uma senhora, que teria sido da antiga comissão de moradores, guardar batatas e cebolas. Numa garagem contígua funcionava clandestinamente uma oficina de carros. Estávamos no principio do anos oitenta e estas coisas aconteciam assim, mesmo ao lado da fábrica de sabões.
Se bem o pensámos melhor o fizémos. Pedimos para poder fazer uma apresentação dos espectáculos mas já tinhamos planeado a ocupação do imóvel, subtraindo-o às batatas, aos colchões e às festas, transformando-o numa casa de cultura e teatro. E lá conseguimos, com uma grande tensão. Tanta, que na véspera da estreia da Peça da Máquina recebo o telefonema do Meirim, desolado, a dizer-me, é pá, os tipos roubaram o cenário todo. O cenário todo era lixo, o que nos fez ganhar uma notícia no Correio da Manhã, "Cenário de lixo roubado no Teatro Imagem", era assim que se designava o espaço, por causa de um projecto teatral que por lá tinha passado. Foi ainda nessa altura que, nesse espaço, fizémos, o António Souto, a Celeste Craveiro, o Armindo S. e eu, o primeiro recital de poesia DN JOVEM.
E começou aí uma batalha feroz que nos levou dias, noites, horas. Benditas horas, todas as horas, mesmo as difíceis, as malditas, que desci e subi a Calçada Duque de Lafões e em que aprendi o abc da animação social e comunitária. Coube-me trazer para lá um dos grupos que acabou por ajudar a caracterizar mais o Palco Oriental, a Máscara Teatro de Grupo (fenómeno teatral que deveria um dia ser estudado, projecto de Rui Pisco, Pedro Wilson e mais tarde, Pedro Alpiarça). Principalmente o Pedro Wilson, através do Triato do Beato, nascido nos Cursos de Teatro dados pela Máscara nas escadinhas de Belas Artes, e que foi um aliado activo do João Jorge Loureiro (Meirim) que, desde que entrei com ele lá até hoje, e já passaram vinte e seis anos, tem sido o elemento mais activo e persistente de todo este processo. Foi também aí que comecei a trabalhar profissionalmente, ensaiando a História de uma Cozinha, de Horácio Manuel, num grupo que ele criara para trabalhar com as escolas.
Desde a altura em que deixei de ir ao Palco Oriental até hoje tudo mudou. A Associação do Palco fez um esforço por chamar artistas, por partilhar o espaço com outros grupos, por dinamizar a vida cultural da zona. Há uns anos envolveu-se numa disputa com a Igreja, que pretendeu ( e está em vista de conseguir) recuperar na justiça um espaço que nunca foi verdadeiramente seu.
É mais uma história triste, daquelas em que a Igreja não sai muito honrada. E creio que também acaba por demonstrar um erro estratégico (eu só me apercebi disso hoje ao ler a crónica do Desidério Murcho, no Público, "Religião e Moral"). Mais do que tentar ganhar a batalha nos tribunais, mais do que tentar ganhar a batalha na opinião pública (mas a opinião pública está-se ralando para estas coisas de tipos que na zona oriental nunca baixaram os braços e insistem numa trabalho sobre a cultura e o teatro), errámos - e digo errámos porque no momento em que há uma acção de despejo sobre uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, não me parece que a situação seja facilmente reversível - quando não tentámos perceber que a Igreja não são só os que a coberto da saia e da batina procedem ao tráfico de influências, mas sim também aos que nas pequenas comunidades religiosas mantêm viva a sua fé, a sua prática e tentam melhorar-se. Esses, se bem informados, poderiam talvez perceber que dar cabo da vida cultural de um espaço como o Palco Oriental é um acto pouco cívico, pouco ético e muito pouco religioso. Mais próximo dos vendilhões do templo que de Jesus.
Assine a petição online.
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1 comentário:
Foi tocante a descrição que fez do palco Oriental e de todo o trabalho ali realizado e excomungado desta forma pela Igreja que discrimina a Arte!!
Uma vergonha .
Mais uma vez em Portugal assiste-se á justiça do Padrinho!
Nuno Marques
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