quarta-feira, abril 22, 2009

Fripórte

Aqui. Mais uma peça deste puzzle. E est'outra, de um jornalista que tem estado em intensa investigação sobre o caso. O que se pode dizer sobre este assunto?
Sinto grandes dúvidas sobre o que se pode dizer. A primeira coisa que descortino é que há dois casos Fripórte.
Um, o judicial. O outro, o do jornalismo. São processos diferentes. Incluem metodologias diferentes (o judicial, em teoria, não fosse a institucionalização da fuga ao segredo de justiça é muito mais lento e "não admite prognósticos antes do fim do jogo") . Admitem provas diferentes (o caso do vídeo rejeitado pela procuradora titular do processo judicial é paradigmático deste facto). O processo jornalístico, onde se destacam o trabalho do Público e do Sol, é, neste momento, liderado pelo Jornal TVi. Para além dos méritos próprios da estação em captar a atenção mediática, a natureza audiovisual de alguns dos materiais apresentados como prova fazem com que seja natural que a TVi tenha ganho grande destaque em relação ao jornalismo escrito.
O caso Fripórte, do ponto de vista judicial, está subdividido em três partes: a primeira, a da investigação judicial em relação ao caso, executada por aqueles que no nosso país têm autoridade para serem titulares de um processo de investigação criminal. Uma segunda, mais recente, a das pressões sobre os magistrados que conduzem a investigação criminal. É natural que este último se associe ao primeiro e lhe confira uma dimensão política (o que é quase explosivo num país que está a entrar em período eleitoral). A estas juntam-se uma terceira, constituida pela iniciativa do primeiro ministro de tentar criminalizar a difamação e utilização indevida do seu bom nome que, segundo ele, terá ocorrido, bem como a da TVi, que terá avançado com um processo por difamação, contra o primeiro-ministro.
O caso Fripórte, do ponte de vista jornalistísco está também subdividido em vários momentos: a da investigação jornalística que está a ser realizada pelas equipas jornalísticas, com grande protagonismo para o Público, Sol e TVi sobre o caso Fripórte; a investigação jornalística sobre as pressões aos magistrados que titulam o processo judicial; a cobertura noticiosa sobre as iniciativas judiciais do primeiro-ministro contra todos os que, segundo ele, o difamam, e onde adquirem protagonismo as queixas contra João Miguel Tavares, a redacção do Jornal da TVi 24 e o Público; a cobertura noticiosa sobre as pressões aos magistrados que titulam o processo (pressão que envolve uma dimensão política inegável e que obriga por isso a tomada de posição sobre os partidos com assento parlamentar), e finalmente, a cobertura noticiosa sobre o impacto social e politico do caso Fripórte, onde se inclui o comentário e a opinião.
Para além disso há a dimensão oculta entre todo este processo, a forma como eles comunicam entre si, o processo judicial e o processo jornalístico, com o recurso a fontes. Jornalistas, magistrados, políticos, e cada vez mais os cidadãos sabem-no, são modos de comunicar onde muitas vezes os fins, informar, justificam os meios. Não é preciso ter uma grande cultura mediática para disso ter crescente consciência.
Por outro lado há ainda, a tornar mais complexa esta situação, a natureza pública da acção penal e criminal (que decorre de constitucionalmente estar adstrito ao Estado a administração da Justiça) e a natureza privada de grande parte da actividade jornalística.
Seria bom que cada um de nós percebesse, quando lê uma notícia sobre o caso Fripórte, a que é que ela se refere. Refere-se a um novo dado da investigação criminal que saiu para a praça pública através de uma quebra do segredo de justiça? Refere-se a um dado da investigação judicial sobre as pressões aos magistrados titulares da investigação criminal? Refere-se a uma informação sobre um novo processo ou queixa-crime movido por Sócrates aos jornalistas ou por estes a Sócrates? Refere-se a uma informação decorrente da investigação jornalística sobre o caso Fripórte? Refere-se a uma informação decorrente da investigação jornalística sobre as pressões aos magistrados? É um comentário ou uma opinião sobre o caso? É uma posição de um partido político sobre a dimensão política do caso?
É que embora tudo isso seja englobado mediaticamente no ficheiro Caso Fripórte, tem implicações diferentes, naturezas diferentes, motivações diferentes implicando por isso uma análise diferenciada. O facto de Sócrates ter processado judicialmente João Miguel Tavares (embora não nos diga nada sobre o seu envolvimento no processo criminal) reforça o seu envolvimento no Caso Fripórte pelo simples facto que a notícia sobre isto se replicará vezes sem conta no espaço mediático e será agrupada no dossier Fripórte.
O que havemos ou podemose fazer sobre isto assim, com esta dimensão de bola de neve ? Parece que pouca coisa. No entanto o pouco que podemos fazer é muito: podemos começar por reconhecer que a República hoje é isto: A investigação criminal por um lado escondendo o processo e por outro lado criando condições para que ele saia para a rua em parcelas para montar; a investigação jornalística por um lado condicionada a mostrar a conta-gotas, telenovelizando o real, fazendo com que ela, a investigação, se transforme num produto que é consumido e vendido semanalmente.
Não tenho dúvidas de que, em relação a este caso, Sócrates e muitos dos seus apoiantes, ou muitos jornalistas sérios educados numa escola jornalística que rareia, ou cidadãos que empatizaram com o primeiro ministro e se pôem na sua pele, tenham em muitos momentos a sensação de que tudo está perdido, que é dificil mudar o circo.
Eu sei porque já senti isso mesmo em relação a anteriores casos (Ferro Rodrigues, Paulo Pedroso e até Carlos Cruz) onde me deixei envolver emocionalmente por essa empatia. Só que o circo é a República e a república é o País. Desde há alguns anos é o que temos para oferecer aos nossos políticos, aos nossos jornalistas ( e como esta palavra na realidade de uma empresa jornalistica recobre também pessoas cuja única relação com o jornalismo é a de o negociarem), a nós mesmos como comunidade. Esta é a república, o circo, o lugar.
José Sócrates independentemente de ter sido ou não sujeito a enriquecimento ilicito e corrupto poderá, com a chuva de processos judiciais que vier a ganhar, vir a enriquecer de modo lícito. As empresas jornalisticas que eventualmente sejam condenadas por terem deturpado os factos para conseguirem vender telejornais, jornais ou revistas serão confrontadas na barra dos tribunais com o seu enriquecimento ílicito. Esta é a república, o circo, o lugar onde vivemos. Não nos deixemos emocionar pela atitude de vitimização tanto do primeiro ministro e de quem o defende como dos jornalistas a quem Sócrates processa. Manuela Moura Guedes adoptou nesse sentido uma atitude inédita: a de processar José Sócrates por este ter dito que o jornalismo da TVi 24 h era caça ao homem (num momento de grande infelicidade para Sócrates) e ao fazê-lo, pela reciprocidade de sentimentos, concedeu uma grande dignidade à atitude de Sócrates e demonstrou uma grande confiança no sistema judicial.
E repito, o que podemos fazer? Podemos começar por assumir que podemos fazer muito. Podemos e devemos não nos cansarmos de seguir o fluxo informativo. O problema é que nós estamos direccionados para recolhermos informação conducente a uma tomada de posição o mais rapidamente que for possível, parece que não somos ninguém se não podermos dar um palpite, tomar posição, e depois, quando a tomamos, é dificil afectivamente desmontarmos a informação que construímos. Por exemplo, temos um vídeo em que um sujeito diz que Sócrates é corrupto. Mas também temos, mais recentemente, a notícia de que há declarações desse sujeito a dizer que essas declarações, que aconteceram, são falsas e que as fez para tentar justificar o desaparecimento de dinheiro.
Não nos cansarmos de seguir o fluxo informativo. É o primeiro mandamento da nova era mediática. Depois, insistirmos a pensar pela nossa cabeça. Se uma televisão difunde um vídeo onde aparece alguém a dizer uma coisa que entretanto desmentiu, a televisão tem o direito de o fazer mas nós temos de tentar perceber de que forma é que constituimos a nossa opinião, se é através das imagens ou da informação veiculada.
A nova sociedade da informação precisa de nós. Precisa que perservemos a nossa capacidade de ajuizar, pensar, julgar. Que avaliemos os nossos preconceitos e a forma como eles podem manipular a realidade. É bom que nos entendamos sobre uma coisa: a TVi (assim como a SIC) não tem como primeiro objectivo do seu trabalho jornalístico procurar a verdade. Não quer dizer que os seus jornalistas não sejam verdadeiros, não sigam as regras de isenção que aprenderam na academia e na profissão. Quer apenas dizer que a pretensão da verdade distorce a possível compreensão da realidade. As televisões querem liderar o mercado das audiências vendendo um produto jornalistico da melhor qualidade que lhe for possível fazer (sabendo que para isso deve ser o mais possível isenta, ter capacidade de investigação própria) face aos prazos de fornecimento de informação que tem. Mas também não querem a mentira, a manipulação, a caça ao homem ou o assassinato de carácter do primeiro ministro ou de outra qualquer pessoa. Concordarei com aqueles que dizem que face à fraca qualidade de muitos produtos informativos muitas vezes podem pouco, vezes demais sabem menos, e frequentemente são condicionados pelo tempo que têm para fornecer uma determinada informação (por exemplo, ninguém espera que o próximo Jornal da TVi conduzido pela Manuela Moura Guedes não tenha qualquer coisa sobre o caso Fripórte). Concordarei ainda que este clima preconceituoso que, por mais que fundado num legítimo sentimento de injustiça, existe entre os socialistas, o gabinete do primeiro ministro e a TVi, desenvolva um comportamento recíproco da TVi, alicerçado num não menos legítimo sentimento de injustiça, para com José Sócrates *.
A informação, num regime democrático e numa economia de mercado, não é tendencialmente manipuladora. É um produto jornalistico que pode ser melhor ou pior realizado. Somos nós que nos deixamos ou não manipular pela informação que a TVi, a RTP ou a SIC ( e estou a cingir-me apenas à produção televisiva nacional) produzem. Somos nós que estamos entre o circo, o país ou o lugar.
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*É ver como José Eduardo Moniz não deixou de ser tão infeliz como José Sócrates quando este, perdendo a compostura institucional que um primeiro-ministro deve ter, se pôs a classificar de modo muito pejorativo o trabalho de uma determinada estação televisiva que é também uma empresa, que tem uma marca, trabalhadores, um património, a cuja perservação Sócrates, enquanto primeiro-ministro, deve ser o primeiro a mostrar solidariedade. Por mais que seja humanamente compreensível Sócrates estadista ter cedido a voz ao Sócrates cidadão, nós temos o direito de querer um pouco mais do nosso primeiro-ministro. As declarações de José Eduardo Moniz sobre a liberdade de informação são uma vitimização muito mais patética do que a de Sócrates, já que este, em sua defesa, tem o facto de estar a ser objecto de um tirocínio tão insuportável quanto inevitável. Quer isto dizer que temos motivos para esperar o pior deste confronto.

8 comentários:

bill disse...

Fripór

JPN disse...

...te.
:)

Sílvia disse...

O que sinto em relação a isto, como em tantos outros casos explorados até à exaustão, é que no fim não teremos acesso à verdade. E se a verdade não é um objectivo do trabalho jornalístico, se os jornalistas apenas vendem produtos, então não me interessa seguir uma informação que manipula factos em função de vendas e, neste contexto, não entendo porque apelas ao seguimento do fluxo informativo. Para confundir, para termos mil versões de coisa nenhuma e nenhuma versão fiel da questão?
É difícil pensarmos pela própria cabeça se estivermos demasiado envolvidos pelos pensamentos e opiniões alheias. Onde acabam os outros e começas tu? Não se cria assim distanciamento, nem liberdade, para uma opinião própria. O excesso de informação é poluente. Tudo o que pensares que pensas, já alguém pensou por ti.
Mais facilmente se deixam manipular os que seguem o fluxo informativo diário, do que os que prudentemente se afastam da perturbação que ele gera.
Este teu post, por exemplo, parece-me um artigo jornalístico sobre o jornalismo à volta deste caso, mas na verdade não consigo perceber, para além das dúvidas (que são tuas e nossas) o que é que tu pensas.

JPN disse...

Atenção, eu não disse que "a verdade não é um objectivo do trabalho jornalístico". Escrevi:"a TVi (assim como a SIC) não tem como primeiro objectivo do seu trabalho jornalístico procurar a verdade". Concordarei que a diferença é subtil. Como em quase tudo na vida, a diferença é muito subtil. É por isso que nos enganamos tanto. Mas é bom clarificar com o máximo de exactidão possível o que se pensa.

E esta discussão apanha com um dano colateral: a discussão sobre a verdade. Entendo-a como um produto ideológico de natureza filosófica e religiosa que tenta responder à necessidade humana de comunicarmos e de na comunicação estabilizarmos referentes e partilharmos dados. O que existe é uma procura de uma evidência que possa ser partilhada sem sobressaltos dentro de uma mesma comunidade e aí o jornalismo, na senda do trabalho dos primeiros historiadores, é uma actividade que tem uma metodologia muito própria (como a abordagem de múltiplos pontos de vista, o esforço de isenção levado até às últimas consequências) capaz de recrutar e formular dados que apresentam uma extraordinária congruência para um muito alargado número de pessoas.
É claro que para mim há um movimento nos dois sentidos; por um lado vivemos numa comunidade preparada para reconhecer como factos os dados que são trabalhados segundo as metodologias próprias ao trabalho jornalístico, por outro lado há de facto uma notável congruência dos dados trabalhados segundo a abordagem jornalística e por isso ela é tão importante para o desenvolvimento de sociedades livres.

Respeito muito quem pensa que deve abrir a cabeça para o silêncio, e fechar a porta a esse imenso ruído mediático mas mais uma vez, tentei dar um exemplo (em relação ao célebre DVD) de como por vezes é importante seguir o fluxo informativo. É um exemplo que vale por si. Concordarei que há outras situações onde a poluição informativa cria ruído.

Perguntas-me o que penso sobre isso: penso várias coisas. A primeira é que devemos suspender o pensamento tentando perceber em que condições de recolha de informação é que pensamos. Foi isso que tentei responder neste post, ao tentar pensar em que condições é que sou chamado a produzir pensamento. Pensamento é capaz de ser um bocado pretensioso. Antes, como escreveu um dia Edson Ataíde, produzir o meu "achismo" (os meus achos que, os meus pensos que, etc).

Mas não penso só isso. Descubro nestas situações que não tenho grande pachorra para as mitologias do trabalho jornalístico mas tenho uma grande esperança no trabalho dos jornalistas. Conheci alguns, de mão cheia, que me ensinaram muito dessa esperança. escrevi uma vez aqui sobre um desses episódios (http://respiraromesmoar.blogspot.com/2003/08/mquina-da-verdade.html).

Mónica (em Campanhã) disse...

pois eu confesso que adorei ouvir o Sócrates cidadão, confirmar que como qualquer homem bonito, também ele perde às vezes a sua compostura ultra-assertiva de 1º ministro e se mostra um pouco, digamos, mais humano.

declaração de interesses: eu abomino o estilo TVI e MMG e quando por engano carrego no botão da 4 dá-me uma espécie de choque.

PS viva joaquim!

JPN disse...

sejas bem aparecida! viva!
(eu não condeno José Sócrates por ter perdido a compostura. mas lamento. é um bocadinho menos o meu primeiro-ministro quando faz isso. independentemente da irritação que a TVi e MMG deixam em grande parte dos portugeses (menos em JEM e VPV)gostava de o ver a mostar a sua humanidade doutra maneira.)

Eduardo Graça disse...

O Miguel Sousa Tavares no Expresso sintetiza o aspecto mais relevante deste tipo de situação, ou seja, há alguma de errado numa maquinaria que ventila lama para cima de alguém, ainda por cima primeiro ministro, sem que se saiba quando se vai fazer justiça (dá para pensar ainda por cima com os antecedentes conhecidos):

Já aqui escrevi, há quinze dias, sobre o que penso do caso Freeport e da posição em que ele coloca José Sócrates. Escrevi que, pessoalmente, acredito na sua inocência, mas não abdico de ver tudo esclarecido, sem margem para qualquer dúvida. O que eu não entendo é a leviandade de tudo isto: um homem é publicamente suspeito do pior dos crimes políticos e a coisa arrasta-se, meses, anos, em fogo lento, sem que ele seja ilibado ou acusado e tendo ainda de governar o país e enfrentar eleições sob esse peso. Não pode desistir, porque seria como que uma confissão de culpa; não pode continuar em igualdade de circunstâncias com os seus adversários políticos, porque há sempre essa terrível suspeita pendente sobre ele. Não pode ficar quieto e calado, porque alimenta as suspeitas; não se pode defender, porque é uma ‘ameaça’ e uma ‘pressão’. O que pode um cidadão, que tem o azar de ser primeiro-ministro de Portugal, fazer num caso destes e enquanto espera que a Justiça cumpra o seu papel?

JPN disse...

Eduardo, não sei se há algo de errado, se há aí uma oportunidade. Que há um grande risco, esse é por demais visivel e o MST fez dele um enquadramento atento. Só que a vida tem de ser vista para além do drama pessoal e temos de tentar perceber como é que essa sucessão de dramas pessoais não se torna na tragédia da nossa democracia e para isso precisamos de saber o que é que cada um de nós pode fazer e, principalmente, se acreditamos que cada um de nós pode fazer, ou, por outras palavras, se acreditamos que aquilo que cada um de nós pode fazer tem alguma relevância política para a resolução deste problema. Não creio que seja um argumento minimamente convincente de qualquer uma das partes falar em perseguições, caça ao homem, ou tentativa de censura (embora seja sedutor, o 24 horas trazia as razões do ódio entre Moniz e Sócrates e esgotou nas 4 bancas onde pergutei por ele. Queremos cabidela de ministro, primeiro ministro, político!). O cidadão comum tem de entender isso também como lama na viseira do seu melhor entendimento.