domingo, junho 28, 2009

Quero o meu tempo de volta

Sempre que vou à do Luís, a Natureza do Mal, o meu primeiro espanto é a beleza introspectiva das imagens. Veio-me isto à cabeça porque me apeteceu escrever um post que tivesse um desenlace pictagórico mas atrasei-me no projectar das imagens e sabia, se esperava por elas ficava sem o texto. Apetecia-me, apetece-me verdadeiramente escrever. Hoje foi um daqueles dias inúteis, saborosos na sua inutilidade. Ficámos a colocar os quadros na parede. Um dos quadros que mais gosto não é um quadro. É um espelho. Ficou de uma forma que permite a uma pessoa que esteja sentada à mesa ver o rio do outro lado, tal e qual como as pessoas que estão viradas para a janela. A colocação desse quadro aí foi uma pequena vitória pessoal e argumentativa. Não desenvolvi muito, por falta de vocação e experiência, o meu sentido estético em relação à materialidade das coisas. Falta-me o atrevimento nas cores que ela, como descendente de uma tupi guarani, herdou. Este preencher das paredes é assim trabalho demorado e dificil, quando feita a dois e são dois universos que se reconfiguram. É no entanto uma tarefa apaziguadora. Já li uma vez um romance sobre isso. Não me lembro do título. Nem creio que fosse um romance maior. Dois amantes passavam o dia nisto, coloca prego -há uns que se chamam os amigos do senhorio - tinhamos desses, mede a parede, a altura, a borda do contorno superior, e depois, porque estas tarefas exigem tanto de distanciamento, vê lá se está direito, mais para a esquerda, sobe um poucochinho de nada, quanto de proximidade, segura aqui enquanto espeto o prego, de repente os cheiros a roçarem-se, um braço toca no rosto, na boca, na língua, as linguas enroladas ao corpo, ao despir, ao trincar, já não me lembro como se chamava o romance, li-o na minha juventude, li quase todos os romances na minha juventude, nunca me voltaria a lembrar dele não fosse esta circunstância, uma tarde de outono metida num verão a negar-se aos prazeres do estio, uma tarde apaziguadora, a minha vizinha de baixo abriu a porta e de repente o Jeremias e a Mia subiram o lance de escadas e entraram por aqui a dentro, o Jeremias já tem o seu sitio preferido, a varanda, a Mia vai atrás, esconde-se atrás do sofá, sobe às cadeiras e desce pelas suas traves, o Jeremias a certa altura sobe à mesa e contempla o último quadro que colocámos, temos uma gato especialista, pensamos, depois aproximamo-nos do quadro e descobrimos o seu interesse especial naquela pintura. Hei-de colocar depois aqui esse quadro *. Apetece-me simplesmente escrever. Saborear este prazer, esta vontade de meter os dias nas noites e as noites no meu tempo. Amanhã vou chegar ao meu trabalho e vou pedir aumento de ordenado de uma forma engenhosa: eles pagam-me menos um terço e eu trabalho menos metade do tempo. Preciso de mais metade das minhas horas e para isso estou disposto a ceder um terço daquilo que me pagam. Para amar, para escrever, para sair de mim, para ver o mundo. Escrever. Escrita-de-ver-o-mundo. Escrita-de-andar-por-aí. Andar de bicicleta com o nariz empinado só para fazer de leme. Meter pedras nos sapatos para ir ao fundo enquanto ando. Há várias técnicas para ser feliz e nalgumas delas a felicidade é uma cereja. Não vou atrás agora. Para quê? Esta prosa é inconsequente. E assim, inconsequente, fica muito próxima daquilo que a minha vida é. Às vezes olho para fora, para a vida dos outros, os que têm sucesso, os que têm dinheiro, os que têm poder, e invejo-os terrivelmente e penso que sou um falhado. Que falhei terrivelmente em tudo. São breves momentos de acidez a que ainda em permito. Mas depois, pouco tempo depois, há um pequeno estremecimento, pode ser qualquer coisa, como há pouco aquele anúncio na minha rua de uma prática de yoga, eu penso, vou voltar a fazer yoga, de manhã, imaginam?, às oito e meia da manhã, a cinquenta metros da minha casa-de-ver-o-rio, eu a fazer yoga, a respirar profundamente, a entrar em comunhão com o chão, com a terra, e com essse estremecer sai-me outra vez a lotaria e a terminação, sinto o privilégio que tenho em trabalhar onde trabalho, em fazer o que faço, em ter o prazer de viver que tenho. Quero apenas recuperar o meu tempo de volta. Amanhã, depois de amanhã, depois de depois de amanhã, não sei, um dia, o mais brevemente que me for possível, vou ter o meu tempo de volta.
* Acabei por lhe pedir que o fizesse e quando já tinha terminado o post, estranhando a demora, fui lá baixo procurá-la, estava sentada em cima da mesa, a tentar fugir ao reflexo da luz do candeeiro, ao seu próprio reflexo, e eu nicles, as fotografias pretensamente boas deixei-as na máquina, é um privilégio meu o seu reflexo naquilo que faz.

2 comentários:

CCF disse...

Como te compreendo... :)
~CC~

Cristina Gomes da Silva disse...

É bom agarrar o tempo, ainda que seja uma ilusão :)