sábado, junho 27, 2009

Não era por aqui que eu queria ir

escrevo algumas palavras para fugir a outras. é sempre assim quando escrevo. as palavras-bomba são difíceis de aguentar no palato. ou se dizem ou de repente transformamo-nos em escreventes-suicidas. eu sei. é pura cobardia atrasar-me nas palavras-bomba apenas para poder prolongar por mais um pouco esta cumplicidade com as manhãs a rebentar de luz, de chilreios, desta febre que é não saber. há no entanto uma outra coisa que me sustém a denúncia, o grito, a poleta: as palavras-bomba são arrogantes, são a própria arrogância. elas acreditam que a nossa vida tem sentido e que é preciso abrir a goela para denunciar os transvios de direcção. e a vida tem sentido claro que têm. mas não consigo acreditar que a vida tenha assim tanto sentido. tem o sentido de primeiro, quando acordarmos, ser o principio do dia, do nosso dia e de, quando nos deitamos, ser o fim do mesmo. um pequeno ciclo quotidiano que se abre e fecha todos os dias. o acordar e o deitar é o nosso ensaio geral para a morte. nós nunca soubémos que nascemos, nós nunca soubémos que morremos, mas todos os dias ensaiamos o que é nascer e o que é morrer. é uma experiência. a minha mulher diz que quando eu durmo me saracoteio todo, que me mexo para trás e para a frente, que projecto o meu corpo, cada vez mais pesado, no vazio e que depois o deixo cair, em peças separadas, um braço, uma perna, em cima do corpo dela. ela acorda estremunhada e depois olha para mim, para a minha agitação, e demora-se no ver. no olhar. ela não sabe, porque eu não lhe disse, mas sou eu a ensaiar a minha morte e a rebelar-me contra ela. sou eu a ser levado por anjos, por demónios, por seres alienígenas, para um universo sem quarta parede, e isso para mim é a morte, a minha morte é fim da representação, o término do meu privilégio de estar sempre diante do olhar dos outros, dos meus semelhantes. é por essa sua condição de espectadora do ensaio da minha morte que eu sei que a amo de uma forma devoradora. há na nossa procura de par essa dupla condição: procuramos alguém com quem viver o resto da nossa vida mas, sem o sabermos, procuramos alguém a quem confiemos a nossa morte. e não apenas a nossa morte fisica, o entreacto final. é mais do que isso. é que em vida, naquilo que a gente chama vida, nós morremos. sabemo-lo de ciência exacta, morre a cada segundo uma célula de mim, antevemo-lo de ciência inexacta, a nossa identidade, aquilo que forjámos para dizer impantes isto sou eu, morre também, renasce também, a cada momento. mesmo quando estamos sós, mesmo quando ainda não temos um espectador para a nossa morte final, ou para aquilo que a física - que é o deus dos agnósticos como eu - chama, a nossa última experiência sobre a morte, nós morremos e renascemos, numa alquimia espiritual onde se confundem livros, mestres, imagens, filmes, lugares. não existe solidão despovoada. mas tenho de ser honesto com quem me lê: eu já não sei falar de solidão. ou pelo menos da solidão que tinha quando comecei este blogue e que era a mesma que me acompanhava há quarenta e sete anos. tenho aliás a sensação de fraude quando me escrevo aqui e depois no final automaticamente a máquina assina por mim, jpn. Eu morri. E não me chorem meus amigos, ou apenas viajantes que passam por aqui à procura de uma sombra fresca. É de celebrar uma morte assim. Encontrei o meu par na roda inteira que é o mundo e esse par é também a escolhida para ser a espectadora da minha morte (havia logo de encontrar uma que não acredita nisso por isso já me estou a ver a andar lá pelas paisagens hologramáticas a a arrastar eternamente este pesadelo do sem fim), mas é também a única pessoa em quem confio a minha transformação numa outra pessoa. A frase é pires e um pouco kitch mas eu, o novo eu que sou, já não tem medo de nada, muito menos das frases kitchs: o encontro de um par na roda inteira é como o encontro de duas substâncias químicas que se encontram para daí formarem uma nova. E não nos assustemos com a antevisão: há sempre algo para procurar no mundo humano. Em eus procuramos o nós. Em nós, procuramos o eu. E mais: tudo isto se aprende como há muitos anos aprendemos o abecedário e a tabuada. Passo a passo.

2 comentários:

Isabela Figueiredo disse...

Olha, não consigo comentar. Vou ali chorar um bocado.

Doramar disse...

O teu dormir é pulsante, sinto-o como uma celebração inequívoca à vida, uma recusa à morte e não o seu ensaio. Projectas-te, danças, serpenteias e assim a enganas; a morte a ti não há-de apanhar. Só biologicamente ela é inexorável. E eu, preparando o meu caminho para viver contigo a inexorabilidade das coisas, deixo-me adormecer e acordar imutável, atenta, porque sei que precisas dessa quietude e segurança para exultares todo o fogo de vida que há em ti.
Nada do que escreves é kitch ou pires, "Nada teu exagera ou exclui".