domingo, agosto 30, 2009

Memórias ao pé da estante

[Imagem daqui]
Não sou muito dado a exercícios do género, o que é que eu poderia ter sido se não tivesse trilhado o caminho que sou. É claro que há coisas que me suscitam um campo saboroso para dúvida. A minha vida, como a vossa, não tem clarividência nenhuma e por isso dou pontapés nas pedras, ou vejo passar comboios. Aliás, eu nunca confessei, assumo isso como se fosse um castigo, para não darem por mim, pela minha satisfação, adoro ver passar comboios. Excita a matéria poética que há em mim. Ao contrário, e voltando ao fio condutor, das conjecturas sobre o que poderia ou não ter sido a minha vida se, por exemplo, e agora que penso nisso, nos finais de 80, em vez de dar por finda a minha carreira de actor tivesse dito que sim ao convite do Leandro do Vale para ir numa digressão aos Açores e à Suiça com o Teatro em Movimento, ou ao Castro Guedes, para um espectáculo no Teatro de Vila Real? Ou se, a meio de noventa, tivesse respondido positivamente ao desafio do Carlos Narciso quando ele, olhando a leva de estagiários que se lhe apresentavam, se vira para o Luís e para mim e diz, vocês vêm para os Casos, ok? Ou quando aquele leitor do DN Jovem me telefonou a oferecer um belo emprego porque tinha ficado seduzido por um porra no final de uma frase. Ou se eu não tivesse dito sim ao Carlos Fragateiro, quando ele em 96 me convidou para ir para o INATEL, onde muitas vezes temo vir a apodrecer de tença certa e contentamento satisfeitinho. É saboroso para mim pensar que poderia ter vivido de outra maneira, mas nada me motiva a gastar muito tempo com esse tipo de conjecturas. Sou um pequeno pau de madeira levado pela brisa, a minha vida é isso, e está muito bem. Não é só com os textos, como este, que gosto de perder tempo, é com tudo. Este texto está a gastar o meu tempo e o vosso. Anda deste o princípio a evitar falar do verdadeiro impulso que o trouxe à superfície digital onde escrevo. Perdulário do tempo. É assim que me vejo. Rio-me da imagem que eu forneci aos outros até aos meus trinta e poucos anos: um tipo determinado que sabia ao que ía e vinha. Apetece-me, tenho gosto em ter sido esse, mas não seria capaz agora de vestir essa farpela um segundo que fosse. A brisa do vento trouxe-me bem para longe dessa certeza. E agradeço-lhe o ter-me deixado conservar o humor e o relativismo, que me faz tão bem ao fígado. Vou finalmente terminar o texto com aquilo que o designou: há pouco, ao procurar alguns livros na estante, ao ver que ainda bem que não mandei às urtigas as dezenas de peças de autores portugueses que fui guardando (tal como se fizesse colecção de objectos excêntricos), fiquei contente por ter querido e podido crescer ao pé do teatro; fiquei a pensar no imenso privilégio que foi poder ter crescido ao pé, ou ao lado, ou dentro de experiências como as da sala de tapete vermelho da Comuna, com os nossos gritos e exorcismos; da sala das escadinhas da Esbal, com a desbunda organizada da Máscara Teatro de Grupo, do Pisco, Wilson e Alpiarça; do palacete da D. Carlos I onde o Luigi e o João Grosso, entre tantos outros percursores do movimento okupa montaram o estandarte da Culturona; das salas e corredores escuros do Teatro Imagem, Centro Cultural e depois Palco Oriental; da intencionalidade vagabunda da Oficina do Grotesco do Luis Beato e da Maria Morais, da Rua Mimo Trupe dos Joões, o Ricardo e o Carneiro; do teatro na escola, com o Horácio e a Fátima, abelhas trabalhadeiras, é o que éramos ( fazíamos num dia espectáculos para quatrocentas, oitocentas crianças, todas sentadinhas e perfiladas no chão das P3, uma récita de manhã e outra à tarde); daquela sala da Rua da Fé onde a Águeda Sena dirigia o Teatro Espaço, onde, entre outros que nunca mais vi, conheci o Júlio Martin, a Manuela Pedroso, o António Fontinha, o João Simões e o José Figueiredo Martins; dos fabulosos Encontros Acarte a fazerem de Lisboa uma cidade onde era importante estar; a daquele buraco na Alexandre Herculano onde a Barraca nos deixava brincar com o Estás a Ficar Careca, Hermengarda!, dos espaços alternativos como o Teatro do Século, ou outros, como a Ocarina, onde vi espectáculos de não alinhados, a Ângela Pinto, o João Grosso, o Miguel Abreu, aquele delicioso O Paraíso não está à vista do Maizum; as salas atulhadas de fumo dos Encontros de Teatro para a Infância e Juventude, onde as conversas e os debates se prolongavam até às tantas, o pessoal adorava falar, o Brites gesticulava, o Caldas cantava, um dia há que estudar os anos oitenta no nosso teatro. Das salas do Conservatório onde a Gisele Barret, o Ryngaert, o Vautelet, o Monod, o Voltz, o Lemaiheu, o André Marechal, nos levavam - pelas mãos, e teimosia do Nóvoa e do Fragateiro (com a ajuda, entre muitos outros, da Paula Folhadela, do Beja e do Gil) ao coração do movimento internacional da expressão dramática. Os setenta ficaram na nossa memória, por causa do aparecimento de companhias independentes que estão também associadas a um período onde o teatro estava muito visível, o teatro estava na rua, era uma grande cegada a nossa vida, os noventa beneficiaram da visibilidade que a Gulbenkian, o Acarte,a Madalena Perdigão (que já antes, no princípio de setenta tinha ajudado a criar e a fortalecer o movimento renovador da educação pela arte) conquistaram para a garagem, para a pequena sala, para o experimentalismo, mas os oitenta, os oitenta até porque muitos grupos que tinham uma grande criatividade no modo como experimentavam a sua expressão teatral sucumbiram à autêntica lotaria que eram os apoios do Estado ao teatro, os anos oitenta cairam num buraco de onde quase nada do que é relevante ficou para a memória futura. Sobrevive ainda, na pele dos vivos, quando olho para o Miguel Guilherme, para o Zé Pedro Gomes, para a Lucinda Loureiro, Ângela Pinto, Wilson, Pisco, vejo uma espécie de conta-me como foi do teatro dos anos oitenta, mas terão de vir os investigadores para retirarem a película de pó, de acáros, e iluminarem um pouco a importância dos anos oitenta para o nosso teatro.
Estou em pé diante da estante. Apoio, como faço sempre, o cotovelo numa prateleira, curvo o corpo. É sinal de que vou ficar aqui muito tempo, por regra só um entorpecimento muscular prenúncio da caibra me fará sair daqui. Não faz mal. Mesmo que já não leia os livros, apenas os títulos, depois são os títulos que me lêem a mim, nunca regatearei o tempo que passo diante de uma estante.