terça-feira, março 02, 2010

Santiago do Chile | Lisboa

No outro dia tive a ideia de entrevistar pessoas que tenham estado em situações de guerra, de conflitos, de grande instabilidade. Interessa-me este vaivém entre estabilidade e instabilidade. Não sei de onde herdei esta convicção de que a instabilidade nos pode ajudar a perceber os dispositivos ideológicos com que concebemos a nossa ideia de estabilidade, reconheço apenas que ela produz sentido em mim. Ontem percebi que tinha rádio da internet no meu telemóvel. Fui para o trabalho ouvindo uma rádio polaca. Não percebi nada do que diziam mas cheguei a emocionar-me com o andar com os pés assentes nas ruas de Lisboa e com os ouvidos e as imagens interiores em Cracóvia. Hoje, talvez porque me deu uma súbita vontade de abraçar o meu irmão em Santiago do Chile, sintonizei as rádios chilenas. A primeira que apanhei foi a Rádio Cristiana, que, na minha desatenção de turista, só percebi que se tratava da rádio cristã quando vejo um sacerdote a explicar o terramoto do dia anterior com o desapego a deus e aos seus universos particulares de redenção das almas. Encontrei depois a Rádio Zero, com quem passei boa parte da manhã. Os dias seguintes à catástrofe são impressionantes e a rádio dá para captar, de uma forma muito especial, essa dimensão de desiquilibrio, de espanto, de interrogação, de impeto, de vontade de começar tudo de novo.
A primeira intervenção que apanhei foi a do ministro da Saúde, sobre a instalação de hospitais de campanha, que vêm um pouco de todo o lado. Também da União Europeia. O tema da ajuda internacional, da coordenação interna desse apoio, dominou a conversa com o ministro. Depois houve um momento curioso: um jornalista no estúdio, em Santiago do Chile, conversa com um ouvinte que está em Concepcion que diz que não há nada aberto, nem uma tenda onde se possa comprar um bocado de pão. E ainda me admiro de eu não compreender nado do que se está ali a passar. A trezentos e poucos quilómetros de distância o jornalista estava incrédulo:
- Mas não há mesmo nada? Como é que as pessoas fazem para colocar comida na mesa? Estamos na terça, o abalo foi no domingo de manhã...
- Hombre! É o que te digo. Não sei se as pessoas tinham reservas, se têm o produto dos saques, a verdade é que nem uma tenda encontrei aberta no centro de Concepcion. Nem uma.
A emissão há-de voltar ao estúdio. Agora conversa-se sobre a resposta tardia do Governo, que demorou muito tempo a perceber que estava diante de uma catástrofe de porporções gigantescas, tanto na perda de vidas como na destruição de equipamentos e instalações. Há um clima de primeiro dia, de sensação de que se está no momento em que as coisas acontecem. Alguém diz, curiosamente é nestes momentos que as pessoas trabalham mais. Há um maior frenesim, as pessoas querem reconstruir, fazer. Os seus tempos de lazer diminuem, são desviados para a mobilização, para a ajuda.
E começam a chegar à antena relatos, testemunhos dessa efervescência social. Muitos voluntários, jornalistas, técnicos, médicos que foram para o Haiti estão agora no Chile. As zonas de catástrofe natural dominam este arranque da segunda década do novo milénio. Há quem interprete isto como sinais anunciados. Talvez, quem sabe. Para mim este momento em que nos tornamos muito conscientes da fragilidade das nossas vidas, também são, como dizia um chileno há pouco, alturas em que descobrimos que podemos mudar tudo. Ou quase tudo.

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