Chego a uma altura da minha vida em que naturalmente começo a reflectir sobre o caldo de cultura e de ideologia que me fez ser como sou, pensar como penso, escrever sobre aquilo que escrevo. A maior parte das ideias que me apareciam com alguma clareza aos vinte anos, hoje são um emaranhado, um lastro, um rumor. Uma das coisas em que tenho vindo a pensar é sobre a minha ideia de Estado, directamente relacionada com a ideia de comunidade. Revejo-me num Estado que reproduza uma ideia de comunidade que, como num casamento, se tenha como solidária na doença e no bem estar, na tristeza e na alegria, na morte e na vida. Estas ideias generalistas sobre o que é o Estado não implicam uma ideia concreta sobre o modo como o Estado deve estar para regular essa função solidária. Revejo-me numa experiência colectiva de regulação e garantia de alguns dos aspectos de funcionamento da sociedade, como a justiça, a saúde, a educação, a comunicação, a segurança, mas não tenho por adquirido que deva ser o Estado a executá-las, podendo este, se não houver perda de eficácia - e a solidariedade implica a procura da eficiência na garantia destas condições - contratualizá-las, de modo a que ela seja feita por aquilo que se convencionou chamar a iniciativa privada.
Tenho aliás o convencimento de que a querela entre os que defendem a nacionalização ou a privatização de algumas funções essenciais para a nossa comunidade, é alimentada por nenhum dos lados pressupôr que o outro, em vez de querer proteger os seus feudos e interesses, está real e sinceramente interessado em dotar de eficiência a garantia dessas funções básicas.
Na minha opinião essa querela tem uma grande quota parte de responsabilidade no esbanjamento de recursos públicos que é realizado em Portugal porque não permite criar um quadro de referência supra-partidário em que a única condição base seja garantir a máxima eficiência na garantia de funções como a educação, a saúde, a cultura, a segurança e a justiça . Dou alguns exemplos: a grande quantidade de fundações, organizações públicas, institutos públicos cujas missões estão mal definidas e que não apresentam um quadro referencial de avaliação da forma como desempenham a sua missão. Não é possível falar seriamente da utilização de dinheiros públicos se esse trabalho não for feito. Por outro lado a desporporcionalidade entre as funções de representação política e partidária e as realidades representadas. Não é possível falar seriamende da utilização de dinheiros públicos quando os nossos representantes eleitos só são confrontados com os seus eleitores que estão mais directamente ligados à militância partidária (e isto nos partidos que cultivam algum dinamismo da sua vida política).
A questão não é tanto o discorrermos sobre o bem que o Estado faz aquilo que faz, ou como o fará melhor que um mercado subordinado aos objectivos da procura incessante de mais valias. A questão é saber como é que nós, os que defendemos essa ideia de um Estado Solidário, vamos promover uma avaliação daquilo que ele faz com base em missões que sejam o mais possível concretizadas para que qualquer um de nós, as organizações de cidadãos, possam confrontar o Estado com alguma eventual ineficiência da sua acção.
Olhemos esta sensação de crise instalada, pelo seu lado positivo: precisamos de destronar as dinâmicas senatoriais, corporativas, politico-partidários, religiosas, que usam e abusam do exercício público. Temos de eliminar o mais possível as incongruências que distorcem a função social do Estado. Há que emagrecer o Estado mas emagrecê-lo da tença, da comissão, do suplemento complementar, da comenda, da alarvidade desumana. Há que olhar mais nos olhos das pessoas e perceber que no mesmo planeta, no mesmo continente, no mesmo país, no mesmo sistema público, não se pode achar natural que entre mil e mil e duzentos euros seja o salário médio de grande parte dos portugueses e que depois haja algumas outras que ganhem, em prémios ou em retribuições ficas, duzentas ou trezentas vezes esse valor.
A coesão social deve ser dos maiores bens que uma comunidade tem e essa não se consegue à custa de uma distorção assim. Só assim poderemos salvar uma ideia de um Estado Solidário. Os modelos de vida social das sociedades antigas em que, sem nenhuma espécie de controlo, poucos dominavam todos os poderes, começam a plasmar-se na vida social e política desta cidade dos nossos dias (que, de tão ufana que é da sua virtude democrática até, em certos momentos de delírio esquizofrénico, a exporta pela força das armas e da estrangulação financeira).
Que Estado quero? Continuo sem saber responder a esta questão. Apenas sei que estamos a criar uma bomba-relógio dentro das nossas casas, das nossas ruas, das nossas cidades. Os grandes centros cosmopolitas da grande desigualdade económica e financeira, que nos habituámos a pensar no longe nas cidades faveladas, não estão afinal tão distantes e começam a ter nomes familiares, de terras que ressoam na nossa memória próxima.
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