domingo, setembro 11, 2011

Fomos ontem ver o Cisne. A última sessão, no Corte Inglês. Como sempre que vemos um filme português, a proximidade que o filme nos oferece com lugares, pessoas, climas, incita-nos sempre a uma operação de reconhecimento que nos vai dando um à vontade com a obra. Quando saímos falámos sobre aquele ou aqueloutro plano, aquele ou aqueloutra fala ou sequência, num tu cá tu lá com o filme que nunca fazemos quando nos encontramos no cinema padronizado. A certa altura mimetizamos os parâmetros críticos que ouvimos por aí, eu falo da actriz, digo que a Ana Batarda estava magnífica, ela corrige-me, não é Ana, é Beatriz, isso, anuo, a Batarda tinha feito um papelão na Costa dos Murmúrios, diz-me ela, que tem sido a principal responsável por eu ter dedicado nos últimos anos mais atenção ao cinema português. O filme, para além daquele fascínio do reconhecimento que advém da proximidade é muito estimulante porque é um filme a sério, é cinema, é qualquer coisa que na sua improbalidade sobreviverá muito para além daqueles milhares de espectadores que o vão ver como se ele fosse também um filme igual aos outros (os outros, aqueles que todas as segundas-feiras, o dia de ir ao cinema, trazem com naturalidade aquela pergunta, vamos ao cinema?). Começa por ser estimulante do ponto de vista narrativo porque procura uma forma diferente de fazer aquilo que sempre nos disseram que o cinema iria fazer: contar-nos uma história. Há nisso, durante todo o filme, um investimento - quase obsessivo - nas ligações improváveis, nas teias invisíveis que se criam, nas estratégias que como num jogo de esconde-esconde o espectador vai fazendo para perceber o filme. Lembro-me da minha alegria quando Pablo leva Vera à porta de casa da sua mãe e eu digo interiormente, ele é o Cisne. Ou quando Sam aparece pela primeira vez e eu faço um paralelismo com o Pablo e conjecturo, ele é o Pablo uns anos depois. E mesmo quando descubro que não é, há algum desse meu esforço que faz com que a minha relação entre esses dois personagens seja enriquecida por esse vaivém narrativo. As personagens principais, Vera, Sam, Pablo, tem densidade e suscitam interesse e o filme, ao mesmo tempo que tem essa irrequietude narrativa tem também uma sentido de economia dos planos e isso valoriza a humanidade com que as personagens são construídas. Há também, é certo, alturas onde o cinema se deixa auto-seduzir pela sua capacidade de criar plasticidade, como aquela sequência em que Sam está dentro do pequeno lago e isso aparece-me como algo de supérfluo mas ao longo do filme vou-os encarando como os custos necessários da aventura de um filme querer criar uma forma própria de narrar. E em que entre uma narratividade padronizada e completamente focalizada em emergir-nos no ficcional como se ele fosse real, tão presente no cinema americano, vai, aqui e acolá, buscar algo à herança de um cinema português - nomeadamente ao tão característico plano fixo, demorado, quase pitagórico, de Oliveira - mas intensificando-o quer através de elementos que nos remetem para uma dimensão não verbal da interpretação dos actores, o som da respiração por exemplo, quer jogando com planos aproximados. Fiquei com vontade de ver o que vem a seguir neste trajecto, porque me parece que há aqui um chão fértil. Até porque há algo de irrealizado neste projecto, já que há sequências - como aquela em que Vera conta a Pablo a questão da casa - que ainda hesitam em desfazer-se de uma teatralidade cuja integração no cinema talvez ainda tenha de fazer algum caminho para poder ter aquele efeito refrescante de virtualidade e autenticidade que faz do teatro um repente intraduzível.
Quanto saio para a rua, vendo aquele mamaracho do Corte Inglês, penso na desigualdade com que aquele filme surge em relação aos outros filmes e o que isso pode significar para todos nós. É aí que a questão cultural, a questão da cultura, se coloca. No plano estrito do seu trabalho de cineasta (é um absurdo, eu sei, como se ele pudesse existir em sentido tão limitado, como se não houvesse algo de político em continuar a filmar), a realizadora não tem muito a perder com a inexistência de um sistema de difusão que crie a possibilidade de fruição deste objecto por parte dos espectadores. Até pode beneficiar disso porque o sistema de legitimação do cânone cinematográfico será sempre mais familiar quanto mais frágil for o dispositivo político da passagem da criação artística para a produção cultural. No caso do cinema foi preciso que os festivais internacionais começassem a valorizar o nosso cinema para que nós o começássemos a tolerar um pouco melhor. O problema não está na criação artística. Ninguém deixa de fazer filmes, de escrever peças de teatro, sinfonias, livros, por não ter reconhecimento público. É o nosso imaginário colectivo que em vez de ir por aqui vai por outro lado. O que sofremos por não conseguirmos fazer valer a ideia de que precisamos de uma política cultural é a perda destes objectos, destes gestos - e fazer um filme, escrever um livro, são gestos de dádiva - para o nosso imaginário enquanto comunidade. Que terá cada vez menos os nossos lugares, os nossos ambientes, as nossas cores, as nossas maneiras de falar. A partilha do sensível. Eu só não consigo perceber como divergimos tanto nesta percepção: há pessoas, como eu, que acham que isto é uma ferida de morte na nossa identidade, na nossa soberania, no nosso "nós", outras que acham que isto não tem importância nenhuma, nickles, zero. Entre uns e outros, nestes momentos, sinto a falta de um pequeno fio no horizonte que há uns anos, numa página ímpar do Público, nos lembrava isto com ar doce mas firme, categórico.

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