quinta-feira, novembro 10, 2011

Feliz por ter crescido ao pé do teatro

Do texto Memórias ao pé da estante encontro este excerto a que volto hoje.

"Vou finalmente terminar o texto com aquilo que o designou: há pouco, ao procurar alguns livros na estante, ao ver que ainda bem que não mandei às urtigas as dezenas de peças de autores portugueses que fui guardando (tal como se fizesse colecção de objectos excêntricos), fiquei contente por ter querido e podido crescer ao pé do teatro; fiquei a pensar no imenso privilégio que foi poder ter crescido ao pé, ou ao lado, ou dentro de experiências como as da sala de tapete vermelho da Comuna, com os nossos gritos e exorcismos; da sala das escadinhas da Esbal, com a desbunda organizada da Máscara Teatro de Grupo, do Pisco, Wilson e Alpiarça; do palacete da D. Carlos I onde o Luigi e o João Grosso, entre tantos outros percursores do movimento okupa montaram o estandarte da Culturona; das salas e corredores escuros do Teatro Imagem, Centro Cultural e depois Palco Oriental; da intencionalidade vagabunda da Oficina do Grotesco do Luis Beato e da Maria Morais, da Rua Mimo Trupe dos Joões, o Ricardo e o Carneiro; do teatro na escola, com o Horácio e a Fátima, abelhas trabalhadeiras, é o que éramos ( fazíamos num dia espectáculos para quatrocentas, oitocentas crianças, todas sentadinhas e perfiladas no chão das P3, uma récita de manhã e outra à tarde); daquela sala da Rua da Fé onde a Águeda Sena dirigia o Teatro Espaço, onde, entre outros que nunca mais vi, conheci o Júlio Martin, a Manuela Pedroso, o António Fontinha, o João Simões e o José Figueiredo Martins; dos fabulosos Encontros Acarte a fazerem de Lisboa uma cidade onde era importante estar; a daquele buraco na Alexandre Herculano onde a Barraca nos deixava brincar com o Estás a Ficar Careca, Hermengarda!, dos espaços alternativos como o Teatro do Século, ou outros, como a Ocarina, onde vi espectáculos de não alinhados, a Ângela Pinto, o João Grosso, o Miguel Abreu, aquele delicioso O Paraíso não está à vista do Maizum; as salas atulhadas de fumo dos Encontros de Teatro para a Infância e Juventude, onde as conversas e os debates se prolongavam até às tantas, o pessoal adorava falar, o Brites gesticulava, o Caldas cantava, um dia há que estudar os anos oitenta no nosso teatro. Das salas do Conservatório onde a Gisele Barret, o Ryngaert, o Vautelet, o Monod, o Voltz, o Lemaiheu, o André Marechal, nos levavam - pelas mãos, e teimosia do Nóvoa e do Fragateiro (com a ajuda, entre muitos outros, da Paula Folhadela, do Beja e do Gil) ao coração do movimento internacional da expressão dramática. Os setenta ficaram na nossa memória, por causa do aparecimento de companhias independentes que estão também associadas a um período onde o teatro estava muito visível, o teatro estava na rua, era uma grande cegada a nossa vida, os noventa beneficiaram da visibilidade que a Gulbenkian, o Acarte,a Madalena Perdigão (que já antes, no princípio de setenta tinha ajudado a criar e a fortalecer o movimento renovador da educação pela arte) conquistaram para a garagem, para a pequena sala, para o experimentalismo, mas os oitenta, os oitenta até porque muitos grupos que tinham uma grande criatividade no modo como experimentavam a sua expressão teatral sucumbiram à autêntica lotaria que eram os apoios do Estado ao teatro, os anos oitenta cairam num buraco de onde quase nada do que é relevante ficou para a memória futura. Sobrevive ainda, na pele dos vivos, quando olho para o Miguel Guilherme, para o Zé Pedro Gomes, para a Lucinda Loureiro, Ângela Pinto, Wilson, Pisco, vejo uma espécie de conta-me como foi do teatro dos anos oitenta, mas terão de vir os investigadores para retirarem a película de pó, de acáros, e iluminarem um pouco a importância dos anos oitenta para o nosso teatro.
Estou em pé diante da estante. Apoio, como faço sempre, o cotovelo numa prateleira, curvo o corpo. É sinal de que vou ficar aqui muito tempo, por regra só um entorpecimento muscular prenúncio da caibra me fará sair daqui. Não faz mal. Mesmo que já não leia os livros, apenas os títulos, depois são os títulos que me lêem a mim, nunca regatearei o tempo que passo diante de uma estante."


1 comentário:

Doramar disse...

Muito bonito este álbum de memórias. E de repente apeteceu-me ser a tua estante :-)