quinta-feira, abril 05, 2007

O meu amigo

O meu amigo é beleza pura. Olho para ele e dificilmente vejo olhos, nem mesmo aqueles olhos vivos, expressivos, indíos, nem nariz, nem boca, nem orelhas, nem rosto. Vejo tesouros sulcados na terra, no ar, nos mares. É como se a sua face fosse o mapa das histórias que me conta. Há quase sempre algo de épico nelas. Com ele compreendo o verdadeiro sentido da palavra justiça.
Eu quase que nem consigo falar na sua dor. O que é que eu posso saber de alguém que fala da justiça como se falasse da sobrevivência do seu povo enquanto povo? Eu sou de um país que quase não existe. A primeira vez em que ele me falou na absoluta necessidade que a Colômbia tem de fazer justiça às vitimas da guerra, eu duvidei se ele me falava mesmo de justiça ou de um lastro de ódio, de vingança. Tive de lhe fazer algumas perguntas para perceber que se se me tivessem morto metade da minha turma de escola, os amigos de infância, quem não saberia se seria capaz de se livrar do ódio, da sede de vingança, seria eu. Afortunadamente ele é das poucas pessoas que conheço que não odeia. Há um mês comandos para-militares mataram quatro jovens numa rua de Apartadó. Talvez estivessem a consumir marijuana, cannábis. As famílias dos jovens massacrados dividem-se. Não denunciar é fazer com que aquelas mortes nunca tenham existido. Calar é não conseguir esquecer, numa mistura barrenta de dor e de remorso. Denunciar a uma Justiça conluiada com os para-militares é correr perigo mas é permitir que aqueles que trabalham para defesa das vitimas da guerra possam cartografar o mapa do terror, da morte. É aqui que eu e ele conversamos sobre justiça. Ou seja, ouço-o, sobre a justiça só sei escutá-lo. Justiça na sua boca é um palavra que eu não sei pronunciar. Fala-me de todo o trabalho sobre o levantamento das vitimas como uma possibilidade, como a única possibilidade para o seu país. E por mais absurdo que pareça fazer justiça não é tanto colocar na prisão os assassinos, os torturadores, os corruptos, aqueles que semeiam de sangue as terras verdes, amarelas e vermelhas da sua terra. Nunca tal seria possível senão derrubando a opressão. Mas a opressão não nasce da mesma árvore. A tentativa de libertação da opressão trouxe mais violência, mais mortes e mais opressão sobre aquele terra calcinada. A justiça que se pede agora não é a que se restituam os mortos. É apenas que se diga a verdade. E nessa verdade cabe o dizer-se que o contexto político beligerante serviu para muitos crimes, usurpações e roubos. O imenso trabalho a fazer é construir uma história que permita assassínos, para-militares, guerrilheiros, torturadores e torturados serem parte de um mesmo país. Nunca se trarão à vida os mortos. O sonho do meu amigo não é esse: é tirar a morte dos dias da sua terra, deixá-la florir apenas com as memórias das histórias que se confundem com as narrativas de Garcia Marquez.

1 comentário:

Anónimo disse...

A negação dessa verdade, desse passado colectivo, tem um efeito feroz e violento não permitindo um fluir do legado geracional oral, não possibilitando o cicatrizar de feridas, hipotecando a possibilidade de fazer o luto e seguir em frente.
No nosso micro cosmos a verdade da nossa história pessoal, seja ela a que for, é parte fundamental da nossa construção como indivíduos. Exigir que ela seja reconhecida como autentica, real, factual não é apenas a legitimação do outro, mas neste caso representa um tácito pedido de desculpas que a verdade histórica obriga a dar.
Maria João