segunda-feira, maio 14, 2007

Da educação sentimental: A mulher ideal

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Ao entrar em casa deixo cair um pequeno cubo de acrílico com fotos tipo passe. Estão lá os meus rostos desde criança. Dos meus familiares. De amigos. Quando o vou apanhar reparo numa foto de uma bébé. Era de uma amiga, do meu primeiro projecto de namorada. Digo projecto porque nunca cheguei a namorar com ela. Eu não a conhecia. Escolhi-a através de uma janela, nas aulas de físico-quimica. Quando me contaram que o grupo de rapazes com quem me dava no pátio da escola estava a começar a interessar-se por um grupo de raparigas não quis ficar sózinho. Estava na aula, olhei para o pátio, a minha colega de carteira, a Ester, elenca-me a distribuição, a Elisa é a do Neves, a Lurdes é do Germano, e quem é aquela?, pergunto eu, é a Paula, responde ela, é dessa que eu gosto, disse eu, e antes da aula acabar já estava o namoro de conveniência tratado. Foi giro. Namorávamos assim: levávamos as raparigas desde a escola da Piscina até à Rua Almada de Negreiros onde elas moravam, enquanto falávamos de assuntos pueris, como vestuário beto, das discotecas in e out, dos concertos em Cascais, dos perfumes, Aramis e Paco Rabane eram os preferidos, além de trocarmos fotos, uma actual e outra de infância. É assim que ainda hoje tenho uma foto da Paula com ano, ano e meio. E depois subíamos todos até às vivendas do Aeroporto, e enquanto eles me aterrorizavam com feitos inscríveis do trabalho masturbatório, falávamos das estratégias, que incluiam planos em casas abandonadas, fins de semana na Praia Grande ou nas Azenhas do Mar, para conseguirmos seduzir as nossas namoradas. O Neves chegou a namorar com a Elisa, a Lurdes andou com o Germano, só eu fiquei de fora. Por um motivo nada pueril e que me enrubesceria senão tivesse perdido já todas as vergonhas a que um homem tem direito: ela não tinha peito. E como não tinha coragem de o dizer, inventei outras razões, hábito que continuei a ter pela vida fora. O que foi mau, o Neves e o Germano, mais experientes, podiam-me ter dito que uma rapariga de doze anos, eu tinha quinze, podia ter o peito pequeno mas que ía crescer. E o que cresceu. No ano seguinte desabrochou e sempre que passava por mim parecia que abanava os seus seios salientes para mim como se me desdenhasse. Eu não sabia, mas tinha começado assim uma longa história da minha educação sentimental, a da procura da mulher ideal. Nunca soube o que era a mulher ideal. Houve uma altura que me parecia muito claro que ela seria uma mistura entre a Jeanne Moreau, a Malvina de a Gabriela, Cravo e Canela, Manuela Moura Guedes, locutora de continuidade que ainda não tinha aquela boca do tamanho do mundo e uma rapariga de Odivelas que tinha passado o verão de 77 na barraca ao lado da dos meus primos na praia do Narciso, em Carcavelos. Nem sei hoje qual seria a linha comum entre todas estas mulheres que, na altura em que eu me preocupava com a mulher ideal, me faziam sonhar. Só que depois começaram a chegar as mulheres verdadeiras à minha vida. E eu comecei a perceber que tinha entre mãos um problema muito maior do que aquele que constituiria a busca da mulher ideal. É que quando a segunda, a terceira, a quarta mulher ideal começou a deixar de fazer parte da minha vida, é que eu percebi que a grande questão não estava nesse arquétipo meio juvenil que se foi formando no meu inconsciente sobre a perfeição feminina, a grande questão era que eu, por imaturidade, por cobardia, ou por ignorância, ou por aquele enxame de razões que por vezes nos atacam de forma furibunda, pudesse não saber reconhecer numa mulher uma mulher, pudesse não saber fazê-la senti-la especial, amada, estimada. Não foi uma grande descoberta, ou pelo menos, uma daquelas descobertas que nos fazem mais alegres. Saber que a mulher ideal nunca me baterá à porta, que ela vive há muito dentro de mim, pode fazer-me, circunstancialmente, um ser humano mais apessoado mas é, inúmeras vezes, ocasião para sofrimentos próprios e alheios cuja medida certa nunca sei contabilizar.

8 comentários:

David (em Coimbra B) disse...

Reclamo para mim a Malvina da Gabriela, minha primeira paixão de TV. Não era bonita? Sobre esse assunto procura o CD "João Villaret no São Luís" e ouve a faixa 22 - Quadrilha - do Carlos Drumond de Andrade.

Cristina Gomes da Silva disse...

Bom dia JPN, foi um prazer ler este teu texto hoje. Andou por aí uma dose redobrada de inspiração? Será dos jardins digitais? Pois é, de facto os nossos ideais hão-de ser sempre o resultado de muitas misturas, e ainda bem, porque assim as probabilidades de o encontrarmos são maiores. A sugestão do comentário anterior ilustra-o bem.

Anónimo disse...

Não sei como encontrei este lugar, mas talvez a busca incessante me tenha feito chegar.
Fico sempre agradada com o que escreves.
Com respeito a este post, gostava de fazer o seguinte comentário:
-isto vale para os dois géneros. É fácil definirmos quem não queremos, o difícil é perceber quem queremos e durante quanto tempo e de que modo - lugar-comum, bem sei, mas é facto que não existem formas de contratar e garantir ímpetos, emoções e/ou sensações. O A. Damásio lá nos tenta esclarecer estas coisas..
O curioso disto tudo é chegarmos à tua conclusão e ainda assim, a reincidência no erro.
ms

Anónimo disse...

olá Joaquim. Gostei ainda mais de ti assim depois de saber que tenho um amigo que descobriu a verdade sobre a mulher ideal.

CCF disse...

Engraçado isto e com muita verdade lá dentro, sem dúvida. Padrões de beleza (e moldes para o desejo) são coisa que todos temos, crescemos com eles e alguns nunca se libertam, mesmo que sejam grilhetas a impedir que o amor possa nascer e/ou permanecer. Contudo é bem e ainda mais verdade que uns olhos, na luz que eles guardam, podem ser (quase) suficientes para nos tocar de forma única. E o que nos comove num olhar de um outro vai também mudando connosco.
~CC~

apicultor disse...

Ainda assim há umas mulheres ou homens que se aproximam do ideal, por isso existem casais harmoniosos,embora poucos.Esses conseguiram encaixar o parceiro no seu ideal ou então construi-lo à medida do que têm.

Cristina Gomes da Silva disse...

Pegando no comentário do apicultor, eu estou em crer (mesmo não sendo crente)que é mais a última hipótese...construção à medida :)

Mónica (em Campanhã) disse...

e eu queria ser como a Malvina, cheguei a copiar-lhe o corte, sem sucesso!!! coincidências

ideal é uma palavra cheia de impossíveis mas intriga-me muito, e até hoje ainda não descobri, o que é que me sobressalta, ainda hoje, num certo rosto de homem, num perfil, num descair de ombros, num corpo que passa na rua e me faz virar a cabeça porque me toca e fere numa corda retesada ao centro da minha barriga