quinta-feira, julho 19, 2007

O virús do totalitarismo democrático (1)

[Na sequência do meu post "O virús do totalitarismo democrático" Eduardo Graça de O Absorto deixou um comentário que é um excelente ponto de partida para prolongamento da discussão. Resolvi por isso continuar com o tema.]
a
"Não vejo, não sinto, não compreendo, que essas circunstâncias estejam criadas, ou em vias de serem criadas, o que não exclui as tensões, os riscos, as vacilações, as guerras, as violências, o que, para mim, não é um sinal de "democracia totalitária". Porque a democracia e o totalitarismo se excluem mutuamente."
i
l Não me interessa tanto discutir sobre o que o eu ou o Eduardo dissémos, mais explorar eventuais possibilidades desta conversa seguir a via de um enriquecimento. Já o disse mais de uma vez: confio pouco, e transitoriamente naquilo a que tenho de chamar minhas opiniões, confio muito mais naquilo que resulta de um diálogo, ou de uma conversa. Por isso não irei dar muita importância ao facto de eu ter falado em "virús do totalitarismo democrático" e de o Eduardo o ter referido como um sinal de "democracia totalitária". O que num contexto outro poderia fazer toda a diferença.
Utilizei o termo virús por uma razão muito especial: não só é um termo muito recorrente do imaginário contemporâneo, também porque exprime com grande propriedade a natureza de um comportamento que afecta a própria saúde de um determinado organismo, nesta caso da democracia. E principalmente, porque permite que consigamos visualizar um corpo são, as nossas democracias, e um comportamento não tão saudável, o virús do totalitarismo democrático. O virús do totalitarismo democrático não é um paradoxo. É democrático porque, mesmo sendo totalitarismo, é um comportamento que é, ou pode ser absorvido pela vivência democrática. E é um virús porque é um comportamento estranho ao padrão de comportamentos da vida democrática. E da mesma forma que ele pode espalhar-se por todo o corpo, pode fazer com que o corpo democrático possa transformar-se num corpo totalitário.
Transformar-se num corpo totalitário e não numa democracia totalitária, que isso não existe, de acordo, democracia e totalitarismo excluem-se mutuamente. O que não quer dizer que tudo isto seja estanque ( e nós sabêmo-lo, quando utilizamos a metáfora da primavera marcelista para designar um período em que, recorrendo à metáfora que utilizo, se poderia dizer que no corpo do regime político fascista se injectou um virús democrático).
O que é então, o virús do totalitarismo democrático, do qual abordei apenas uma manifestação, uma manifestação do campo da política nacional, a da emergência da grande necessidade de uma maioria absoluta para uma boa governação?
[Mas poderia ter abordado outros como já o tinha feito aqui, quando falei sobre o amor, ou aqui, quando tentei esboçar a ideia da aventura da totalidade, e principalmente aqui, quando escrevi a aventura totalitária.]
i
i
É um comportamento que pretende substituir uma das melhores qualidades da vida democrática, a da confrontação política - o que não só pressupôe a diversidade, como a valoriza como condição para a obtenção de uma melhor ideia sobre um determinado problema - pela da ausência de confrontação política decorrente de se ter angariado uma comunidade política que engole todas as outras.
Este é um problema claro da saúde política das nossas democracias e que não tem nada a ver com a situação política concreta que se vive em Portugal. Quem o inventou primeiro foi Sá Carneiro, com a AD, em 1981. Uma maioria, um governo e um presidente. Só que a maioria da aliança democrática já representava ela mesma uma concertação de pontos de vista negociada entre o PPD, CDS e PPM. O primeiro a dar um sinal claro de que só governaria se tivesse uma maioria absoluta foi o actual Presidente da República. António Guterres resistiu até ao fim a pedir a maioria absoluta, quando foi da reeleição, mas, não a obtendo, zangou-se com o país e desistiu dele. A seguir, Durão Barroso lutou sózinho pela maioria absoluta e acabou preso a uma maioria de incidência par(a)lamentar.
Ou seja, o tema da maioria absoluta, como uma inevitabilidade para a possibilidade da existência de um bom governo, tem feito o seu caminho. Não há eleição, nacional, regional, local, que não aspire a essa condição. Tudo isto é tão caricato que quando António Costa foi escolhido para presidente da Câmara de Lisboa, alguns analistas chegaram a falar em derrota, só porque ele não tinha tido maioria absoluta. Como se aquilo que legitimasse uma eleição não fosse a vitória, mas uma meta tardiamente introduzida na cultura democrática, a de que só seja possível ganhar quando se tem maioria absoluta.
Para mim o virús do totalitarismo democrático, como já referi nos links que fiz para outros posts, refere-se a uma realidade muito mais alargada que não apenas a desta dimensão política que me tem ocupado neste post. Mas vale a pena insistir nesta dimensão política.
A dramatização da necessidade de conquistar uma maioria absoluta faz com que o maior esforço da política seja afinal não governar, mas conquistar e manter o poder. E para o conquistar, a propaganda política é tida como uma das artes mais decisivas. Já para o manter, o principal é que o exercício de poder se transforme ele em propaganda. Já achamos todos banal por isso, em vésperas de eleições, o corropio inauguracional, ou a disputa do espaço mediático dos candidatos por parte da agenda do governo.
Há duas maneiras fundamentais de transformar o exercício do poder político em propaganda: uma é a de fazer com que o que ele se transforme em acontecimento mediático. Outra é a de silenciar a diversidade, fazendo com que tudo surja como um grande bloco monolítico. Só quem nunca esteve ligado a partidos, grupos, associações e outras formas de agremiação política é que desconhece o valor político que a expressão " o partido fala a uma só voz" adquire nos momentos de exercício efectivo do poder.
Agora há que não confundir as coisas: uma coisa é a tendência dos grupos políticos, como qualquer agrupamento, para a criação da identidade através da uniformização. Isso não gera só por si o virús do totalitarismo democrático. Senão todos os partidos seriam só por si um processo de degenerescência da vida democrática. Não são. Já o escrevi aqui muitas vezes, não alinho nesse pensamento anti-partidos. Sabemos também, por experiências desenvolvidas em certos grupos politicos que é possivel a cultura da diversidade dentro dos grupos. E mais do que isso, é possível manter a tensão entre tendência para a uniformização e tendência para a diversidade, com indíces satisfatórios de democraticidade.
Outra coisa é esta tendência discursiva, muito própria do fim da era pós-modernista, de um discurso anódimo, sem sangue, sem veia. Que, paradoxalmente, surge com grande capacidade mobilizadora através da exponenciação das suas possibilidades mediáticas em que, só o número, a exponenciação do número, excita, incentiva, agremia.
Depois da tendência dialógica do modernismo, depois da tendência para o monólogo do pós-modernismo, parece que nos vamos confinando a um discurso sem autoria, sem ideias, mas que parece reposicionarmo-nos diante de uma discursividade mágica cujo principal efeito de magia resulta da sua possibilidade totalitária.
Ou seja, é bom descentrarmo-nos da leitura da realidade política actual. Estou a tentar pensar numa realidade política bastante mais alargada. Muito mais influenciada por comportamentos sociais do que por fenómenos da vida político-partidária. Há quanto tempo deixámos de fazer a apologia da singularidade como processo de descoberta identitária de um entre os demais? Na educação, na cultura, nas escolhas de vida? Há quanto tempo deixámos de pensar que a solidão compensa? Há quanto tempo pensámos em constituir a comunidade na tensão entre o individual e o colectivo?

Sem comentários: