quinta-feira, março 27, 2008

Ressurreição

Era domingo de Páscoa numa pequena igreja em Sintra. A liberdade é isto, podermos fazer o que nos dá na real gana e assim, sem necessidade de outras justificações, vi-me a mim mesmo, agnóstico confesso, num tempo, numa filial da ICAR, a assistir a uma missa que integrou um baptismo. É certo que fiquei em pé - e não foi para relembrar o sofrimento das minhas missas de juventude, em que contava mentalmente as páginas do missal para saber quanto tempo ainda tinha de missa - mas para que a qualquer momento pudesse sair. E não o fiz por outra razão que não o frio que se entranhava pela noite de Sintra: comecei a olhar aqueles crentes, um a um. Os que cantavam, os que liam, os que genuflectiam. Os que ouviam o sermão. Lembrei-me também do meu pai. Até aí eu nunca tinha conseguido imaginar o meu pai no púlpito. Sei que ele foi padre, já aqui falei várias vezes disso. Mas não o imagino no púlpito. Na memória que tenho ele é demasiado humano para o conseguir imaginar vestido com aqueles hábitos, a pregar. E, contaram-me, o meu pai era um daqueles padres oradores, a quem eram entregues recorrentemente os actos de pregação.
O padre que eu ouvi, embora utilizasse uma expressão chã, simples, que potenciava a comunicação com os fiéis, não era um tribuno muito eloquente. Nem tinha grande rasgo nem especiais efeitos de oratória. Talvez por isso, passados cinco minutos em que os seus truques de prosódia se revelaram, centrei-me nos fiéis. Ali, iluminados pelo calor das velas, daquela luminosidade ténue, não me pareciam iguais a todas as pessoas que encontro na rua. Algumas cantavam e as suas vozes trabalhadas ressoavam pela igreja. Outras liam, e faziam-no com solenidade. Estavam serenos a ouvir a pregação. O tema era a ressurreição. O padre ligou o tema à ecologia, ao cuidado com o mundo, à preocupação com a energia, com a água - a fonte de tantas guerras disse - com aqueles que sofrem. O discurso nada tinha de relevante. A única coisa que ali se distinguia era a minha surpresa por me ter tornado incapaz de pensar que os católicos, quando reunidos, falem do mundo em que vivem. Olhei os fiéis, tentando perceber de que forma é que tudo isto actua, produz sentido na vida quotidiana em que me cruzo com muitas destas pessoas, a maior parte das quais não conheço.
É extraordinário para um agnóstico há muito afastado com a igreja dar-me conta deste espaço de doutrinação, de apologética, em que se constitui um sermão, uma pregação. Estas pessoas vêm todas as semanas sentar-se aqui para escutarem um homem, que lhes é apresentado como seu pastor espiritual, e que lhes fala de livros, das Escrituras, do Evangelho. Vou imaginar que não conheço a ICAR ( o que não deixa de ser verdade, eu creio que é por isso, por já a conhecermos tão bem que a deixamos de conhecer e é por isso também que de repente algo se descontextualiza e surge o espanto). Um livro é um livro em qualquer parte do mundo, é cultura. Aquelas pessoas vêm das suas casas a uma determinada hora de domingo para se sentirem irmanadas. Quer dizer, irmãs. Vêm partilhar uma mesma visão hermenêutica de um livro. É engraçado, muitas daquelas pessoas são capazes de dizer que há muito não lêem um livro. É também verdade que o Evangelho, se tornou muito menos livro e muito mais pedra.
O que vejo agora: uma centena de pessoas em torno de um livro, de uma parábola, de um sermão, de uma ideia de procura espiritual. Não esqueço o resto. Não esqueço Caeiro, e tudo no céu era estúpido como a Igreja Católica. Não me detenho nas suas qualidades nem nos seus (imensos) defeitos. Aqueles não são a minha tribo, se algum dia a tiver. Eu, que também procuro os meus irmãos, a minha irmandade, a minha fraternidade, como diz a minha mãe, quando se refere aos seus franciscanos. Mas fico ali, a ver aquele trabalho de iluminação interior daquelas pessoas que estão na igreja. A forma como entoam as vozes e nesse ressoar está toda uma devoção ao céu, à religião, ao infinito. Não me parecem muito diferentes daqueles que se encontram num espectáculo, seja ele de teatro, de música, de poesia. Saio para a serra de Sintra um pouco mais humano, ou melhor, a imaginar-me num mundo um pouco mais feito de carne e osso.

1 comentário:

foi dançar a bossa nova disse...

"A única coisa que ali se distinguia era a minha surpresa por me ter tornado incapaz de pensar que os católicos, quando reunidos, falem do mundo em que vivem. Olhei os fiéis, tentando perceber de que forma é que tudo isto actua, produz sentido na vida quotidiana em que me cruzo com muitas destas pessoas, a maior parte das quais não conheço."

É isto mesmo. Muito bom post, entre tantos outros igualmente bons!