[jean paul marat]
Dizer-vos que sou democrata é para mim tão significativo como dizer-vos merda com coentros, que foi o primeiro palavrão que me saiu à boca para vos impressionar sobre a minha expressividade vernácula. Estou - nos meus dias de sorte, de bem-aventurança - a chegar aos limites do que é possível comunicar para um tipo que tem um blogue: ou seja, apercebi-me, faz quase cinco anos que aqui ando, que precisaria de dizer algumas palavras antes de me poder remeter ao silêncio. Ainda me lembro quando entrevistei Jacques Lecoq, um grande mimo já desaparecido da cena da arte e da vida: perguntei-lhe porquê as palavras na mímica, ele respondeu-me, é ainda preciso algumas palavras antes de podermos entendermo-nos sem elas. É isso que sinto, que sinto nos meus dias bons. Tudo isto para vos falar de democracia!!! Escrevo como um perdulário. Como se tivesse todo o tempo para vos escrever e falar. Como se esta doença mortal que trago no corpo, a própria vida, um dia não pudesse, sem pré-aviso, estacar-me o fluxo, o rio. Vou - mais uma vez - direito ao assunto: dizer-vos que sou democrata não quer dizer nada. Os meus pais ensinaram-me a dizer que sou democrata. Eles, o meu pai que foi um modesto empregado de escritório que ía votar no Salazar a pensar que - mesmo não vivendo numa democracia - era um democrata e a minha mãe, uma humilde professora primária que tinha sido obrigada a inscrever-se na Mocidade Portuguesa, também tinham sido ensinados a dizer que eram democratas. O meu filho também anda num colégio onde o ensinam a dizer que é um democrata. Eu quero dizer-lhe que é bom ser democrata, que é bom poder dizer que somos democratas, que a democracia é uma escola de virtudes da política, mas quero ensinar-lhe ainda que a democracia não é, mesmo no relativo que é a nossa humanidade, um absoluto. O absoluto, o pequeno deus a que devemos prostar-nos, todos e tudo, inclusive as nossas democracias, é a preservação da ( e a perseverância na) dignidade da vida humana. Independentemente daquilo que para cada um de nós signifique uma vida (con) digna. Só depois vem tudo o mais: as religiões universais, as regiões, as religiões regionais, os países, as religiões nacionais, a própria democracia, o comércio, o lazer, o prazer. E os vizinhos, as estradas, os churrascos de primavera, as festas, as compras ao fim de semana no Lidl, o bricolage no Ikea, a vida sem complicações no Pingo Doce. Os blogues. Há cerca de trinta e cinco anos houve neste país uma revolução que tornou a urgência social uma causa. Não tinhamos democracia. Tinhamos uma panela de água a ferver a que chamávamos país, o nosso país. A ideia de comunidade, de partilha, era prestigiante: Um filho da mãe não poderia ir à televisão dizer que precisávamos de conter o défice se esse mesmo cabresto andasse a chupar e a fazer sangrar o défice público com as suas mordomias públicas. Não tinhamos Marat, não precisámos de cortar pescoços mas não ía. Hoje esse mesmo filho da puta pode ir e ainda por cima pode fazê-lo impunemente porque as nossas democracias amadurecidas transportaram para a zona da não política a resolução dos verdadeiros problemas das pessoas. Na zona da política fica todo esse contrabando indecoroso que é a pequena baixela dos negócios políticos, dos públicos negócios políticos, dos fantasmas, das demagogias.
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