sexta-feira, março 23, 2007
O que podemos fazer?
O que é a solidão absoluta? Não o sabemos. Não o poderemos saber. A minha cabeça não foi feita para se tornar numa caixa onde possa caber o mistério do mundo. O próprio ser pessoa é um projecto terrivelmente vulnerável à manipulação, à exploração, à alienação. Tudo o que conheço, desconheço-o verdadeiramente. Sei estas coisas como? O modo como eu sei estas coisas não é uma forma de não as saber? É. A consciência que em mim há de uma determinada existência da coisa que há na coisa, pode ser em mim lucidez, mas essa mesma lucidez quando sentada à mesa do mundo, e nem falo do mundo-mundo, não me dou essa importância, digo o meu pequeno mundo, a minha vila, os meus amigos e conhecidos, a minha família, essa lucidez pode ainda ser o espectáculo do que sou eu mas é já o fim da razão. O princípio da loucura. O que é que podemos fazer? Podemos fazer alguma coisa? A resposta, sendo terrível, é ao mesmo tempo encorajadora: podemos fazer o que sempre fizémos. Podemos amar, podemos trair, podemos vender, podemos usurar, podemos explorar, podemos ser generosos, bondosos. Tudo nos é possível. Não saberemos nunca o que é a solidão absoluta. Quando o seu vento frio, a sua aragem fria se aproxima estamos muito entretidos a comercializar, a espoliar, ou neles simplesmente a enlouquecer. Nós dizemos aos poetas que a loucura é a solidão de deus, a solidão do mundo despovoado, mas isso é uma treta nossa para os afastarmos dos negócios. Não! O poeta está sempre acompanhado. Para onde ele for há um rasto de luz e essa luminosidade, por mais difusa, é a incandescência necessária a que a poesia do mundo se renove. O que poderemos fazer? Podemos não fazer nada. Se um dia o conseguirmos, poderemos voltar a fazer parte deste universo, a unirmo-nos a ele, a sermos parte. Há uns de nós que adormecem todos os dias com um mundo desolador, feito de estepes e sofrimento, da devastação ética e soçobrada de um ser humano diante da sua própria impossibilidade. Os sonhos destes são as trevas onde habitamos. Podemos dizer que a maldade é uma doença, que o ódio é uma patologia, mas a verdade é que é dessa fúria que são feitos muitos despertares. Há muitos de nós que morriam se não pudessem odiar todos os dias um pouco da humanidade inteira que vêem quando acordam. Que vêem num transeunte, num vizinho, num companheiro de escola, num familiar distante, até num irmão, ou mesmo num pai ou numa mãe. Dir-se-ía, é de tal forma forte a raíz do ódio, que nasceram para desprezar. Poderemos dizer que não são humanos, que desmerecem a nossa humanidade, mas a verdade é que são como nós, os que acordamos todos os dias para amar um pouco mais o mundo onve vivemos. Nós que adormecemos todos os dias com um mundo de paisagens irreais nos nossos tímpanos, nos nossos olhos interiores abertos para uma luminosidade branca onde, tal e qual como se tivéssemos seis anos e tivéssemos saído da catequese, imaginamos o principio e o fim de todos os nossos mundos. Queremos a poesia, a arte, o teatro, a natureza, a comunidade. Há soçobro em nós claro, mas nunca o soçobrar vai lá, ao lugar da morte do amor. Somos amantes. Fazemos parte do movimento do mundo, pensamos, quando adormecemos. Tranquila ou agitadamente, em sono ou em vigília, somos do movimento poético da vida em relação ao que a habita. Somos choro, somos lágrima, somos riso. E ainda não é cristalino o que podemos e devemos fazer? Devemos continuar a fazer o que sempre fizémos. A desmilitarizar o mundo, a desodiar a terra, o mar, o ar, tudo o que se mexe, tudo o que é movimento. É isso que temos que fazer e devemo-lo fazer. Sempre.
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3 comentários:
Tanto que gostei deste teu texto.
~CC~
:)
É muito lindo o teu texto. Obrigada por esta partilha, jpn.
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