segunda-feira, agosto 20, 2007

Acridoce *

O primeiro dia na cidade. Olho para as pessoas. Já tive medo delas. Os meu pânicos são feitos de algodão doce, tal e qual como as núvens do meu tempo-menino. Ou as cores. Um dia, há muitos anos, conheci uma rapariga nas Escadinhas da Escola de Belas Artes. Eu tinha acabado de apresentar uma performance chamada "Às vezes danados!". Ela, estudante de pintura, seduziu-me com as cores das imagens que me descrevia. Já tinhamos falado várias vezes. Eu encontrava-a na Leitaria Garret, com alguns amigos ou conhecidos, amigos de amigos. O mundo era próximo, sei. "Às vezes danados", era o meu grito, entre o exercício teatral e a performance. Fomos para o seu quarto, uma pequena república com vista para o Tejo ali nas Janelas Verdes. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. O sabor a medo, o medo da noite, o estremecer, o arrepio de princípio do mundo. Havia apenas a luz do luar, da janela aberta sobre o rio. A cara dela onde tinha inscrito o mapa da sua aldeia. Não sei se jantámos. Ainda éramos pobres. Ela fumou um charro, eu dei uma passa, a medo, só para lhe fazer companhia. E depois ficámos a falar sobre o mundo, dizia-se naquele tempo, os nossos ideais. Éramos artistas, ambos, dos melhores, aos olhos dos pequenos espectadores recíprocos em que nos tinhamos constituido. Eu não sei se um dia saberei falar disto aos que vivem hoje, parece-me um mundo tão antigo, tão dissoluto. E se calhar inútil. Mas disso, dessa inutilidade dos nossos dias não sabíamos naquele tempo. Quando estremecíamos queríamos assegurar o outro patamar do jogo, a memória:
- Um dia mais tarde vais-te lembrar disto? - perguntou-me ela.
- Queres que eu me lembre?
- Claro que quero, porque perguntas?
- As mulheres são tão estranhas. A maior parte pedem-me para esquecer.
- Para esquecer o quê?
- Tudo.
- Eu quero que me lembres.
- Então nunca mais te irei esquecer.
E foi então que fez da minha pele, tela. Pintou-me, por inteiro o arco-iris, a pastel, no chão do meu corpo. Eu estava comovido. Tinha sido educado para perseguir as coisas estranhas e raras e pensava que um dia me iria enfastiar de tanta novidade mas de cada vez parecia que o novo era mais festa, mais alegria. Era como se o inusitado fosse eu por dentro a abrir-me, como se fosse uma flor.
- As tuas cores são tão ardentes.- disse-lhe, quando a minha pele começou a fumegar.
- Ardem-te?
- Queimam-me. São de um calor que ainda não existe.
Ela riu-se.
- Tu amas sempre assim com tanta literatura?
- Estás cansada de mim?
- Tu nunca me cansas. És um homem bonito.
Estava orgulhoso da minha pele translúcida, cromaticamente prolongada com a paisagem.
- É das tuas cores.
Eu, que era um pudorento moço, andei nessa noite nu pela casa, de um lado, a espalhar a minha felicidade. Sentia-me revestido de uma película de mel. Ainda lhe prometi, nunca mais me vou esquecer. E nunca mais me esqueci. Desci a Rua da Adiça com o coração aos saltos, olhava para as pessoas renovadamente, já tinha tido medo delas, um pânico de algodão doce, doce como quase tudo na minha vida. j
[Enquanto ouço Acridoce, in Outra Vida, de João Afonso]

3 comentários:

Anónimo disse...

Brilhantes brilhante brilhante

nana disse...

uau...

Anónimo disse...

Os amores novos renovam-nos a alma. Seja quando for. Esses momentos perduraram não porque assim o decidiste, mas porque em si eram felicidade.