sexta-feira, março 09, 2007

Pensar, andar à chuva, vento crescente, chove mais

A notícia da morte de Jean Baudrillard chegou aqui à aldeia ontem. Voltei a lê-la aqui. Simulacros e Simulação é uma obra da qual eu gosto de citar, re-citar, invocar pequenos fragmentos de razão. E "Le Complôt de L'Art" que descobri uma vez numa livraria do Quartier Latin, é uma das minhas provocações de culto. Há uma meia dúzia de anos tive o prazer de o ouvir, numa conferência organizada pelo Bragança de Miranda, creio que na ESBAL . Veio falar sobre o apocalipse, sobre a nossa atracção para com as mitologias do fim. Ouvir Braudillard é uma experiência que tende a inexistir. O contacto com um tipo de pensamento que perde o seu lugar porque invoca uma experiência crítica indomável que tem muita da sua produtividade, e também do seu glamour, na insubmissão, na rebeldia. Para mal ou para bem, os fundamentos da razão mudaram. E isso é pouco perceptível através do pensamento, porque ele é um dispositivo que está terrivelmente programado para apagar as pistas da sua dissolução. Hoje já ninguém levaria a sério Agostinho da Silva quando ele vituperava Descartes pela inverdade da sua famosa asserção, "penso logo existo", contra argumentando que o apóstolo do racionalismo cartesiano não poderia nunca saber se era ele que pensava, se não seria antes, a falar por ele, a voz da máquina reprodutora de ideias em que o labor do mundo se constitui. Hoje achamos e pensamos é a mesma coisa. Isto é bom e é mau, como dizia o professor. É bom para o achismo, é terrível para o pensamento. No outro dia quase fui desancado - eticamente, de despóta para cima - por chamar a esta nova forma de produção de ideias, pensamento acrítico. Confesso, a primeira vez que li Lipovetzky, depois de ter lido o pós modernismo explicado às crianças, do Lyotard, pareceu-me tão fascinante como aterrador. E não posso deixar de sorrir. Eu tive como aterrorrizador Lipovetzki, e instalei-me, como todos nós, candidamente, no terror que ele anunciava. E, como escrevi atrás, isso é pouco perceptível através do pensamento, porque ele é um dispositivo que está terrivelmente programado para apagar as pistas da sua dissolução. Essa mudança de chip - e não há dúvida Ana, a expressão é contagiante - é muito mais notada na função crítica que tradicionalmente esperamos do humor. Na mercadocracia, o humor tornou-se num produto. O humor dos Gatos, do Herman, do Tochas, do Levanta-te e Ri, dos Pastéis de Nata. Os processos de legitimação deste humor confundem-se com os processos de confecção (é de facto um receituário). Onde antes tinhamos risos enlatados que a montagem distribuia por piadas anódimas, sinalizando o lugar onde o espectador se devia rir, agora temos uma plateia de pessoas iguais a nós que se riem nos momentos consignados para tal. Tudo isso não esconde uma realidade dura : os mercadocratas não sabem rir-se de si mesmos. E isso é parte de um mal maior, a improbabilidade do pensamento.

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