quarta-feira, outubro 17, 2007

Que Esperar de Nós? *

"Imaginemos jovens de dezoito, dezanove, vinte anos, a entrarem todos os dias pela porta de um hospital para iniciarem o seu percurso de formação como enfermeiros. A aprenderem de cor a cartografia do corpo, o de fora e o de dentro, os seus acidentes, o relevo, os seus rios, as suas rugas, crispações. Trata-se de uma ciência em que o exacto se conjuga com o inexacto, o aproximado. Durante quatro anos é aqui - nesta matéria acidentada e irregular que é a pessoa - que os iremos encontrar. E um dia surpreendemo-nos porque percebemos que o mais difícil que lhes é pedido não é o conhecimento nem a técnica: é que sobrevivam à morte que ronda cada corpo, cada presença, cada um de nós. Lembro-me bem do momento especial em que me dei conta disso. E também me recordo que foi aí que começou este espectáculo.
Quando o propus sabia que eles não iam recusar este desafio. Embora da nossa relação com a morte faça parte este jogo de esconde-esconde, quase infantil, de socialmente metermos a cabeça debaixo da terra à espera que ela passe, este grupo com quem venho trabalhando sem interrupções desde o final de 2003, é um grupo-coragem. Nenhum de nós sabia no entanto em que se iria transformar esta viagem e não é uma metáfora, este espectáculo constituiu-se como uma peregrinação aos nossos lugares, às nossas histórias.
A ideia era criarmos o espectáculo a partir de todos os materiais que encontrássemos. Não o escondo, tenho desde muito cedo, na minha experiência teatral, uma utopia: a criação do próprio texto pelos actores. Assumo a minha filiação teatral: a expressão dramática e a criação colectiva. Isto que começou por ser uma utopia literal, evoluiu. Em relação aos actores essa evolução surge quando a certa altura comecei a compreender que os actores não precisavam de escrever palavras, eles são por si só texto, escrevem-se, no evoluir da sua presença, do seu corpo físico e espiritual, da sua energia, carne, vísceras, sangue e molécula, no espaço cénico. O Ricardo Rodrigues falará disso, creio, foi assim que distribuímos as vozes neste programa. O Ricardo, que começou o primeiro espectáculo que dirigi para o Teatro Andamento a dizer que não se sentia tão à vontade na escrita, que se realizava mais na leitura, dando por isso origem à personagem do Quasimodo no "Que esperar de nós?". Ele diz-me também que esta minha relação de trabalho com o Andamento termina, nalguns sítios, com um círculo perfeito: é ele que teve a missão de assumir, através da escrita, as várias discursividades dispersas que fomos atirando para cima do chão da sala de trabalho, textos, imagens, improvisações.
A construção deste espectáculo atravessou fases que, na metodologia que defendo, e já assumi que sou fiel à minha árvore, são muito raras num grupo que trabalha sem condições: tivemos a partir de certa a ajuda da AMARA, que acompanhou o grupo num trabalho que, como se vê, tem muito a ver com as nossas projecções sobre a morte. Depois, a certo momento do trabalho criativo, teve uma equipa de escrita, que ia relançando propostas para exploração e que ajudou a estruturar o espectáculo. E por fim, contámos desde quase o início com a colaboração da Margarida Rodrigues, que para além de nos ter feito o registo vídeo do processo de trabalho, o que nos permitiu estabilizar e fixar o trabalho de improvisação, partilhou connosco a construção da visão cénica de "A Morte é uma Flor!".
Há uma parte deste espectáculo que guardo para mim, como todos nós: a forma como ele me ajudou a conviver com a morte, com os meus mortos. Penso neles ao despedir-me deste trabalho, ao fechar os olhos e pensar por momentos na viagem que terminou: a D. Morte andou muito gulosa durante o tempo em que andámos à procura deste espectáculo. Não vou falar em nomes. A morte é o inominável. Os meus mortos juntam-se com os deles e desse chão improvável nasce uma flor. Além disso aqui na sala de trabalho, que para mim é dos raros lugares deste mundo, lugar onde contamos, sabemos as mortes de uns e dos outros, partilhámo-los durante esta jornada.
Este percurso tinha uma permissa: iriamos procurar, investigar, trazer à evidência tudo o que nos pudesse ajudar a falar sobre a morte. E para isso foi fundamental que assumissemos que sabíamos muito pouco. Sabemos o valor do toque, do olhar, da presença. Onde as palavras falham neste jogo imenso de cabra-cega. É com essa matéria que construi a encenação. Teatralmente fecho assim um ciclo, que começou com "O que esperar de nós?", em que trabalhámos sobre a escola, o seu espaço físico, através de improvisações, que continuou com "O Gato", texto meu, espectáculo que não conseguiu cumprir a dinâmica de animação que desde o início o grupo tinha perspectivado e que neste caso tínhamos pensado através da integração dos mais idosos, mas que trouxe o grupo para o exterior, através da sua presença no FATAL, e agora este "A Morte é uma Flor", que realiza um desafio que desde o "Que esperar de nós?" julguei inadiável: o confronto de um grupo que não tem espaço físico próprio com uma sala de teatro onde pudesse estar um determinado tempo a confrontar-se com a escuridão da sala, com a sua luz cénica, com a presença dos vários elementos teatrais. E até, com a compreensão do lugar do camarim na relação com o trabalho do actor.
É em tudo feliz o fecho deste trabalho, até neste desenhar da morte simbólica do animador que sempre fui, que sempre serei. A morte é uma flor…"
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* Texto para o programa do espectáculo "A Morte é uma Flor", a estrear amanhã na Guilherme Coussul.

6 comentários:

margarete disse...

com este post veio uma das citaçãoes que tenho guardadas neste pc

“(...) Corpos macilentos, rostos cinzentos, amarelados, fácies tumefactas, por trás das quais encontrei pessoas carregadas de uma história muitas vezes dolorosa, feita de amor e miséria, de impulsos muitas vezes insatisfeitos... seres vivos, sequiosos de amor (...) para além de todas as dificuldades, de todos os momentos de desespero, para além das tristezas ou das crises de desalento, sempre tive a surpresa de me sentir cada dia mais viva (...)”

in Diálogo com a morte de Marie de Hennezel


o mais provável é que não veja, mas gostaria muito de ver essa peça que anuncias, o texto leva-nos a querer assitir ao rumo dessa questão num palco... que esperar de nós?
e assim me vou, levo a questão a ecoar em mim

um abraço

JPN disse...

sabes que a entrevista que lhe fez o José Mário Silva foi um dos textos que engrossou o caudal de objectos que andavam connosco no ínicio deste trabalho? aparece. :)

Elisa disse...

A peça fica até quando? Também eu, pelas razões que tu sabes e mais umas quantas, gostava de ver.
Beijos

Anónimo disse...

emocionas-me...
pipa

Mónica (em Campanhã) disse...

desse teatro apetece-me ver

blue disse...

sobreviver "à morte que ronda cada corpo, cada presença, cada um de nós." afinal de contas, viver.

(parece ser uma bela peça. vem à província?)