segunda-feira, agosto 27, 2007

O último olhar, disse ele

Em Broken Flowers de Jim Jarmush, Bill Murray depois de saber, através de uma carta anónima, que pode ter um filho que o procura, empreende ele próprio uma viagem para tentar descobrir quem é a mãe do seu filho.
A estrutura repetitiva do filme acaba por mão se tornar monótona graças quer à excelente banda sonora do filme, quer ao modo paradoxal como a personagem de Don Johnston é construída. Por um lado o seu comportamento apático, desafectado, alheado. Por outro um homem que inicia uma viagem através das várias namoradas que teve para descobrir qual delas é a mãe do seu filho, como se isso lhe devolvesse alguma chama existencial.
Imaginei-me dentro do filme e espantei-me com a forma como Don Johnston foi acolhido pelos seus antigos amores. Não acredito que se fosse eu a maior parte das mulheres com quem reparti dias, horas, me abrisse sequer a porta. É difícil confessá-lo mas nunca amei verdadeiramente. O amor em mim é uma memória e uma promessa. Amei quando nasci, e da procura dessa memória de que nem sequer me lembro faço a minha esperança de que por uma vez na vida, nem que seja ao morrer, possa sentir a plenitude de um amor verdadeiro rasgando-me por dentro, libertando-me de todo este ódio com que me deixei enquistar, soltando-me desta matéria pustulenta e ocre com que me entranhei de violência.Amei no exacto segundo em que nasci, aí fui humilde e autêntico amor molecular, cromossomático. Desde esse momento todo eu sou aprendizagem do medo, do egoísmo, da mentira, do desamor e da desafectação. Há uns tempos entristeci-me porque recebi de uma das mulheres com quem mais tempo tinha dispendido a desamar, uma carta a pedir-me para nunca mais a contactar, para imaginar que tinha morrido, emigrado para a Gronelândia, para o centro do centro do mundo, whatever! Agora, ao constatar a persistente inexistência do amor na minha vida, compreendo afinal a lucidez que, como um punhal, a trespassou.
Estas coisas que eu sei sei-as a despeito do amor que nunca senti, que nunca fui capaz de sentir. Sei-as por causa do único vislumbre amoroso que sou capaz de descortinar para além desta memória de que nem sou capaz de ser recordação: os gestos de amor autêntico de que fui objecto. Não são muitos, a maior parte do amor que me dedicaram é tão mesquinho como aquele que dediquei. E nem de outra forma poderia ser quando é a mesquinhez e o desenho de diminuitivo que lavra o chão e a terra onde semeámos e plantámos a flor. Não são muitos, são os bastantes.
O amor em mim é apenas uma promessa, uma memória. Por mais estranho que possa parecer, não é um ser agoniado pela sua própria acidez que escreve, mas alguém que percebe que é na desfiliação de um face à mitologia amorosa do mundo que pode estar a única e a última chance da nossa experiência amorosa ter algo de autêntico.
E a linguagem é apenas mais um entretenimento, um fazer tempo, enquanto a verdade crua e dura da nossa existência não nos atinge como um raio.Eu não o sabia antes e não o sabia assim: o véu vai caindo ao mesmo tempo que caminhamos. Enquanto com o tempo a gravidade puxa todas as nossas carnes para baixo, numa flacidez que nos permite o destempero lúcido de quem deixa para sempre a sua hipótese de ícone, o cérebro, o cerebrelo, a massa encefálica enrijecem, entesam-se na estreita vinculação à única proferição possivel.
É por isso que por mais aparato e exuberância que os nossos amores jovens possam ter tido, ninguém no seu perfeito juízo se comove senão com o amor que espera um dia, na velhice, experimentar. Padeci das mesmas doenças de espírito que qualquer um de nós: procurei uma mulher ou para me governar a vida, ou para me dar filhos, ou para tornar a minha vida aventurosa, ou para me rejubilar nas fotos de família, ou para o vangloreio junto dos amigos ou até, para me rejuvenescer. Tudo isso foi em vão e foi por isso que não deixei nem tenho saudades do amor que não vivi, que não soube viver.
A única coisa que agora ainda espero encontrar em relação àquela que será a minha última hipótese amorosa é algo que não posso ainda, nem nunca, procurar: uma mulher a quem possa olhar no derradeiro relance que pousar sobre o mundo e que espero, seja o mais autêntico gesto de amor que percorreu toda a minha vida.Uma mulher em quem amar e confiar, como escreveu o poeta.
Porque o que conta, a única coisa que verdadeiramente conta na possibilidade amorosa de cada um, é a confiança. É o único momento em que matamos a avestruz enterrada em mitemas de merda, de trampa doce, de lodaçento e pantanoso verboreio. A nossa derradeira chance de luz. Eu sei que tudo isto pode parecer cínico, ácido, desesperançado. Eu creio que não é. Ou que só será se já amarmos mais a linguagem do que a vida, do que a vida autêntica, indecifrável. Esse festim que, quando linguarejo, creio ainda ser possível.

1 comentário:

Anónimo disse...

Confesso... detestei de uma forma visceral.
E detestei tão violentamente porquê?
Procuro dentro de mim, em ti, a resposta...
Hoje acho que mentiste, fizeste batota!
Não és assim... talvez agridoce... nunca ácido.
Conheço-te "daqui", dos teus escritos e vejo que mentiste.
Tudo em ti é saber, esperança e construção. Não há cair do véu no teu cenário. Há procura. Há desencanto, só porque te encantas todos os dias.
um beijo joaquim.
(eu conto! venho aqui todos os dias ler-te... logo sou uma mulher na tua vida. Eu abria a porta, de rompante e com um sorriso gaiato).