sexta-feira, maio 28, 2004

Argila

Não esquecer de trazer os tecks, assentei. Há muito que me apetece trabalhar com o barro, vai ser agora, nas tardes da Terra do Nunca. Não é ainda aquela argila, aquela terra fresca, com cheiro a musgo e a lama com que aprendi a brincar, em criança, no Sobreiro, sob o olhar complacente de José Franco, quando nos íamos sentar à sua porta, maravilhados pela vida daquele homem cujo futuro passava por ser uma brincadeira permanente em tardes de sol e prazenteio.

Refilon

Ontem, já a noite tinha acordado, despertado da e na sua volúpia de mulher bailarina, acrobata, fiz as contas à reclusão deste fim de semana de pai e achei-me merecedor do saracoteio na pista de madeira do B.Leza. Lá dentro tocavam os Refilon. O B.Leza fica ainda mais diferente quando naquele palco acontecem concertos. A noite povoada destes sons fica com um travo a sal e a destempero. Como se escavássemos naquele que às vezes é corredor escuro e fundo onde construímos os nossos dias, as nossas noites, e o tornássemos um enorme ressoador das nossas histórias de vida. Naqueles dias e noites em que apetece acordar a madrugada, o levantar da luz sobre o horizonte, poesia famélica de gentes que a povoem.
Onda sagrada di Tejo, dixá'm beijábo bô ága, un bêjo di mágua, um bêjo di sodádi, pá bô levá mar pá mar levi nha terra B.leza

Homem a Dias

Ou pai de fim de semana. Ontem chegou o novo frigorífico. Com espaço para todos os actimeis que fores capaz de devorar. Com uma gaveta própria para o peixe e a carne e outra para os gelados. Anteontem fiz sopa. Enquanto a fazia ouvia-se a máquina de lavar. Os tempos cruzavam-se. Pelo meio, ainda dei uma olhada no Mónaco-Porto. Vi quase nada do jogo. Não porque fosse forçoso, estava ocupado com outras tarefas mas poderia ter-me desocupado. Creio mesmo que me organizei de forma a não ter de passar por ali. Não me apetece falar de política mas dá-me nojo ver aquele empandeirar em arco de suas excelências. Dói-me aliás ver o presidente que eu tanto elegi a prestar-se àquelas cenas. Amanhã quando se quiser investigar a sério os apitos que não apitam ou os tenebrosos jogos de influência por onde se dilui a esperança que cada cidadão tem no regime democrático que perfilhou, não assobiem para o lado. Vocês, dignissimos, estiveram lá. A fazer metáforas. A gritar olés. A saltarinhar. A muito isto e muito aquilo, tudo ao rubro. E não me venham falar da mistica do futebol. Aos doze anos com a minha camisola com riscas verdes e brancas eu era o Yazalde lá da rua. Adoro correr atrás de uma bola. Tirei manhãs de domingo para ir ver o Oriental jogar com o sabia lá eu quem. A questão não é essa. Aliás nem há questão. E daqui a pouco - espero que temporariamente- nem haverá país. A ética já está a saque entretanto. O cartaz da Força Portugal com aquela plateia toda a saltitar como se estivesse num estádio diz tudo sobre a artilharia pesada que vai ser utilizada neste país do futebol. Mas não assobiem para o lado. A única coisa que eu peço é que não assobiem para o lado. E era eu que não queria falar de politica. Ou queria falar-vos de outra politica. Daquela que leva um homem, enquanto no lume apura o feijão verde naquele caldo de batata e cenoura, a encostar-se à varanda e a prolongar-se no horizonte, sobre o castelo, sobre o corpo deste vale que vai do Martim Moniz até ao rio. Estou a preparar a casa dos Peter Pans. Do Peter Pan Grande, ele. Eu sou o Peter Pan Pequeno. Talvez por isso a imagem marcante de todo este Mónaco-Porto foi o recolhimento de Mourinho com os seus dois filhos, a saborear a vitória. Amanhã, daqui a uns anos, aqueles dois poderão ir buscar a cassete video do encontro e sentirem-se eles próprios, verdadeiros campeões. Entre a Graça e aquele Estádio do Mónaco de onde partia todo o ensandecimento, é também esse o único momento que guardo.

lugar de nenhures

Há um ocaso nesta vida. Nos gestos surpreendidos pela paragem súbita. Somos máquinas de fazer actos. Ou julgamo-nos assim, é capaz de ser mais verdadeiro. O que é que estás a fazer? , é o santo e a senha deste salvo conduto neste contrato social que nos abriga o quotidiano. Não faço nada, consegui, gostaria de responder. Frenéticos fazedores de factos feitos. Artefactos sem engenho nem arte. Ou como dizia aquele homem estátua, parem um bocadinho, porra, deixem-se estar um bocadinho quietos, a ver se o mundo aguenta o embalanço e dura mais um tempinho. Há um ocaso nesta vida. Desaparecimento de gestos, de carne, espírito, de nós. O problema não é desaparecermos, é lidarmos mal com o desaparecimento. Com a ausência. É como se a angústia sobre o desaparecente fosse a convocatória que atribui uma presença ao ausente. Há um ocaso nesta vida. O problema é que não estamos configurados para entender o desaparecimento. Temos a cabeça cheia de merda, de mitemas, de pús, de febre amarela. Há um ocaso nesta vida. E eu estou entre cá e lá, nem lá, nem cá...

quinta-feira, maio 27, 2004

sinais

ao ler o texto longo anterior - ainda hei-de um dia perceber o que a blogosfera tem contra os textos longos - e ao sentir o silêncio que ele deixou cair sobre este blog, fico um pouco com a sensação de que andamos aqui a perder o nosso tempo numa sangria diária. a blogosfera não é para nós, os que gostamos de um pensamento demorativo, aquele encadear de razão que tarda em chegar ao fio, senão da meada, pelo menos do horizonte.

terça-feira, maio 25, 2004

Paz Violenta (1)

[ Há algumas referências menos actuais neste texto, que creio terá sido publicado na ZONA NON, mas mantenho-o como momento de reflexão de um adepto da não violência sobre o sentido desta atitude no momento actual. ) "Não terá sido por acaso que as últimas declarações de Dalai Lama sobre os bombardeamentos no Afeganistão me trouxeram para o interior deste desconforto - e imperativo ético - que é hoje, neste perturbante momento da vida da nossa imberbe aldeia global, defender a ideia não violenta. É que, quando os mais avançados e potentes exércitos da actualidade se instalam na terra, nos céus e nos mares do nosso mundo, militarizando-o despudoradamente, este ideário, aparentemente materializa o mais inútil dos pensamentos. Mais, parece que ele só serve para nos desorientar, para nos incapacitar de compreender como agir no mundo que emergiu de 11 de Setembro. Também por isso, muitos analistas advogam que a partir do atentado às Torres Gémeas só se pode estar num de dois lados, ou contra a guerra ao terrorismo, ou a favor dela. Não creio que haja muitas dúvidas de que a destruição das torres gémeas e o consequente assassínio em massa de milhares de pessoas foi indiscutivelmente um poderoso acto de guerra não convencional, assim como a declaração de guerra ao terrorismo pelos E.U.A e secundada por uma surpreendentemente alargada coligação internacional, por mais que tenha sido a oportunidade para uma ofensiva diplomática e política sem precedentes no pós-guerra fria, é suportada também por um potente dispositivo bélico. Donde resulta que todos aqueles que pensam, como eu, radicalmente, que a destruição do outro é sempre uma perda de razão e uma posição de fraqueza face ao outro, mesmo quando objectivamente a sua não destruição pode implicar a nossa própria eliminação, parecem estarem desconfortavelmente afastados de poderem pensar sobre o mundo onde hoje vivemos. É essa dificuldade de enquadrarmos o uso da violência, que faz com que muitos dos analistas, independentemente da sua proximidade face ás posições americanas, se entrincheirem numa acusação de que o pensamento não violento é hipócrita, só sendo possível porque há alguém que - mesmo perdendo a razão do nosso ponto de vista – se oferece para aniquilar a força que nos pretende destruir. O argumento é poderoso, principalmente no caso do terrorismo, há que o reconhecer. De facto se contra forças policiais e exércitos convencionais, sejam de ditaduras ou de democracias, a força da atitude não violenta tem demonstrado virtualidades que os próprios exércitos foram sendo obrigados a reconhecer e identificar, que força tem esta atitude perante um exército não convencional, fundamentado num fanatismo religioso exarcebado, que militariza à força todos os civis necessários para a prossecução das suas acções? É que se, por mais que, enquanto objector de consciência ao serviço militar, professe algo desesperadamente, que o último reduto da nossa independência não serão nunca umas quaisquer forças armadas (independentemente do tipo de fragatas, aviões ou submarinos com que estiverem equipados), também há que admitir que, ao contrário das organizações e seitas terroristas, as democracias modernas desenvolvem um esforço para tentarem separar - nem sempre com clarividência e produtividade - a sociedade militar da civil, subalternizando a primeira à segunda. O que quer dizer que, nestes casos, mesmo a acção militar - que é intrinsecamente, na minha opinião, uma usurpação da inteligência humana - é tensionada por um pensamento político que lhe impõe, permanentemente, alguns limites, tanto em termos de natureza, como de proporção e de medida da sua acção. O mesmo não se passa com as actuais organizações terroristas do chamado fundamentalismo religioso, cuja prática se caracteriza por uma militarização absoluta e suspensiva da acção de guerra, que será sempre tanto mais eficaz quanto mais furtiva, imprevisível e ameaçadora for para toda a nossa vida quotidiana. O argumento é por isso poderoso, e bem mais difícil de equacionar do que àquela provocação cretina que eu, e todos os que nos declarávamos objectores de consciência - antes de haver um estatuto que protegesse a nossa condição - enfrentávamos quando chegávamos a um quartel e tínhamos de responder, naquilo que se julgava ser um teste à solidez das nossas convicções, sobre como nos defenderíamos se um eventual agressor atacasse o nosso pai ou tentasse violar a nossa mãe. É verdade que – e embora isso não nos aligeire o desconforto - não serão apenas os adeptos da não violência que estarão numa situação desconfortável face á militarização do mundo em que vivemos. No fundo, talvez possamos reconhecer que o generalizado mal estar que vai por esse mundo fora deve tanto à sensação de ameaça que paira sobre a segurança das nossas vidas e o bem estar da nossa casa, da nossa rua, do nosso país e do nosso mundo, como à de que nos encontramos à porta de um tempo de excepção, em que, em legitima defesa, possamos colectivamente ser levados a agir de forma totalmente contrária às nossas crenças, credos e convicções. E é precisamente essa ideia de legítima defesa, e a sua justificação – mesmo para aqueles que partilham o ideário da não violência - que tem sido o suporte político de uma ainda frágil coligação mundial contra o terrorismo, integrando tanto países que têm alianças de sangue, como países que têm alianças políticas, culturais e militares e até, surpreendentemente, países que mais moderada ou mais extremadamente se hostilizam. Porque de facto é objectivamente possível definir, num contexto mundial, o terrorismo como uma ameaça à sobrevivência física de todos nós, quer sejamos transformados em armas quer em alvos humanos, e sendo assim é do mais elementar bom senso desmantelar as organizações terroristas, desmantelar a sua teia de apoios mais ou menos directos, mais ou menos encapotados, anular as suas possibilidades de financiamento e de recrutamento. O facto de o combate ao terrorismo poder ser uma tarefa de legítima defesa não quer dizer que o seja de forma incondicional. Pelo contrário. Quer dizer que só o será se ele se mantiver enquadrado por um conjunto de circunstâncias, de onde sobressaem a da procura da máxima objectividade na definição do perigo e da ameaça, o da proporção da medida defensiva legítima e o da salvaguarda incondicional da dignidade humana das populações civis. Se por um lado, face ás declarações de Bin Laden e da Al Quaeda, é razoável pensar que, devido a esta dupla condição de o terrorismo nos reduzir à condição de arma e alvo, seja acção de legítima defesa a neutralização da capacidade destrutiva desta organização, por outro lado, há que dizê-lo, já não parece razoável que, para neutralizar a capacidade de acção de milhares de fanáticos que estão espalhados pelo mundo e operam debaixo do nosso nariz, se coloquem em perigo de vida muitos milhões de pessoas sujeitas ao terror da fome, das epidemias e da morte nos lugares aparentemente recônditos do Afeganistão. Também, o direito à legitima defesa em nada se confunde com o direito à retaliação, como muitas vezes vem sendo dito. Da mesma forma que o direito à legitima defesa consagra o direito à sobrevivência e é por isso virado para o futuro, o direito à retaliação tem os olhos postos no passado, na perda sofrida. Conferir o direito à retaliação é abrir caminho para a justificação dos atentados de 11 de Dezembro, já que eles também eram, na cabeça dos seus autores, retaliação de uma outra acção que certamente retaliava uma outra retaliação e, daí em diante, até ao inferno, de Dante. Por outro lado, se é de uma cegueira inqualificável não reconhecer as grandes responsabilidades que o chamado mundo Ocidental - e principalmente o mundo anglo-saxónico - têm no modo como, entre o afecto e a displicência, as acções terroristas dos fundamentalistas islâmicos são recebidas pelos países árabes, também é de uma miopia terrível não enxergar que, mais convicta ou menos convictamente, o chamado mundo ocidental, sob a liderança do eixo franco-germânico mas com o reconhecimento político do mundo anglo-saxónico, e muito principalmente do Reino Unido, têm colocado na agenda do combate ao terrorismo uma nova atitude face quer ao mundo árabe, quer ao papel da ONU. Mais uma razão para que seja tão perigoso fundamentar o combate ao terrorismo no passado, nem que ele seja ele tão presente como 11 de Setembro. Mesmo que ainda estivéssemos na infância do mundo, como alguns defendem, seria já muito tarde para reivindicarmos a nossa inocência ou para inventarmos países que não tivessem um passado manchado pela barbárie. A nova ordem internacional, a acontecer, será feita com e entre os países que existem hoje no mundo, será feita com a memória dos massacres e das chacinas que cometeram. E será essencialmente suportada na convicção de que o preço de conseguirmos conquistar o futuro, será o de sermos capazes de olhar a linha do horizonte e confiarmos que esta nova consciência que despertou em 11 de Setembro, também tenha atingido o outro. Sabemo-lo hoje, mesmo que a contragosto, estamos condenados a compreendermo-nos, ou, estaremos condenados por não nos compreendermo-nos. É por isso também que o direito à legitima defesa no combate ao terrorismo não pode ser equacionado sem a defesa daqueles que não têm direitos, como neste momento são os milhões de pessoas –eu escrevi pessoas e não refugiados - deslocadas das suas casas, encurralados entre o Irão e o Paquistão. Porque afinal, na aldeia global o recôndito dos lugares não existe. Se em 11 de Setembro fomos todos habitantes de Nova-York, hoje, somos todos afegãos e evitar a tragédia humanitária deve tornar-se uma prioridade de qualquer combate ao terrorismo. Há que dizê-lo com todas as nossas forças, para além da ameaça que a Al-Quaeda quer representar, o chamado mundo ocidental está na eminência de uma ameaça sem precedentes, e muito mais devastadora, aos nossos valores e culturas, e esse perigo é de virmos a ser autores de um monstruoso genocídio. Temos de reconhecer que, felizmente, por mais que tenhamos as consciências manchadas de sangue, não estamos preparados etica e culturalmente para suportarmos a responsabilidade da autoria directa de um horrendo crime contra a humanidade como aquele que pode estar prestes a acontecer no Afeganistão. Se houvesse alguma bipolarização ela estaria aqui, entre aqueles que reconhecem o valor incondicional da dignidade da pessoa humana e aqueles que, por mais bem intencionadas que sejam, só o reconhecem se.

Fumo branco nos Prémios SPA / Novo Grupo

Finalmente fumo branco nos prémios SPA cuja edição do ano passado tinha ficado congelada à espera de melhores dias na Av. Duque de Loulé. O júri constituido por João Lourenço, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos Porto e Virgilio Castelo, Vera San Payo Lemos e Francisco Pestana (ele também dramaturgo premiado) votou na peça "Homem Branco, Homem Negro", de Jaime Rocha. A peça, segundo o autor, "é sobre os tempos modernos com dois temas muito antigos - racismo e amizade". É de referir que este é o mais importante prémio nacional e que, para além do seu valor pecuniário, é um dos poucos prémios que se tem preocupado em defender a representação e edição da obra ao que agora junta também a tradução para cinco linguas do texto premiado. Parabéns por isso para o Jaime Rocha, um dos autores que nos últimos quatro anos tem estado mais regularmente nos palcos portugueses. De lembrar por exemplo Casa de Pássaros (Avilez/T.Exp. Cascais), Jogo da Salamandra (Celso Cleto/Comuna), Transviriato (José Rui/Acert) e Homens como Tu (Miguel Moreira/Útero). Espera-se também, através das experiências recentes dos Ateliers de Tradução, que consiga iniciar o seu caminho na internacionalização da nossa dramaturgia. Não é só no pontapé na bola que temos de torcer pelos nossos. É claro que como concorrente ao prémio gostava de o ter ganho, mas assim a minha desilusão é aligeirada. Para a próxima, o jantar corre por tua conta, Jaime...

segunda-feira, maio 24, 2004

E mesmo quando a vista já não alcança...

É urgente libertar os Açores. Tirar a César o que não é de César. Há um jardim por florir...

Assim se continua a ver a força do PC...

Coerente e obstinado: não consegue perceber que é um mau princípio pensar que se consegue enganar e mentir ao povo sempre.

Assim se vê a força do PC...

Du'ão Ba'oso é um dos políticos mais coe'entes da 'evolução de Ab'il: M'PP um dia, M'PP semp'e.

sexta-feira, maio 21, 2004

PAZ VIOLENTA

"O pacifismo utópico tem o mesmo dom: tapar o abjecto com um pano; desviar as atenções, enfiar a cabeça na areia. Numa palavra-o pacifismo utópico serve para relativizar moralmente todos os actos. O pacifismo é a política da cobardia militante, a apologia da inexistência de dever, a política do nim. Detesto-o." Ao ler este comentário da Zazie na entrada de a Natureza do Mal, acabo por descobrir que não há nada mais próprio para celebrar o aniversário dos 42 anos do que pegar nas folhas de papel amarelecido a que chamei "Paz Violenta", e que juntei à Declaração com que, em 1980, pedi o Estatuto de Objector de Consciência, e vir defender esta ideia de não violência que é das mais persistentes e convictas com que me tenho amancebado. 1. Paz violenta. Há acções que são exercidas sobre nós que, naturalmente, nos impelem a reagir de forma proporcional. Quando eu agrido alguém - e estou a referir-me a uma reacção irracional porque excluo-me do número daqueles que pensariam em agredir alguém - por mais violento que eu esteja a ser com o agredido, eu comigo mesmo estou a ser natural. Reactivo. Libertando até uma determinada energia. Ora quando eu travo essa reacção instintiva e domino o meu impeto (que me levaria a automaticamente reagir a uma agressão com uma agressão) eu estou a exercer uma determinada força, domínio sobre mim mesmo, tanto mais violenta quanto maior tiver sido a acção que me provocou. Estou a ser violento comigo mesmo. Espécie de barragem eléctrica em potência, investindo na doçura, no mel, na afabilidade, na amabilidade. 2. Somos sempre violentos. De uma forma reactiva ou mudando o padrão de comportamento e apostando na não violência. Connosco próprios ou com os outros. Se somos violentos com os outros somos sempre condicionados pelo exterior. Apostamos numa espiral de violência. O Médio Oriente é terrivel exemplo disso mesmo. Há dois meses e pouco chorámos as vitimas inocentes do terrorismo, em Madrid, e gritámo-lo abjecto porque contra civis. Ontem exércitos profissionais, treinados para defender as nossas democracias atiraram sobre uma multidão de manifestantes ou sobre um casamento. 3. Aquilo a que algumas pessoas maldosamente chamam pacifismo utópico - e outras sem maldade nenhuma, faço fé nessa ideia em relação à Zazie - resume-se a isto: a ideia de não violência é uma ideia tão radical que não pode ser pensada senão numa sociedade original. A partir do momento em que mundo foi varrido por essa ideia guerreira é impossível pensar na paz de uma forma absoluta. 4. O que essas pessoas maldosas e não maldosas tardam em admitir é que essa forma de pensar impôe de forma absoluta a ideia de guerra, que assim até fica com o caminho aberto para poder ser entendida como uma actividade de procura da paz. Outra coisa que estas pessoas não reconhecem é que o militarismo utópico tem o mesmo dom: tapar o abjecto com um pano; desviar as atenções, enfiar a cabeça na areia.." A utopia do militarismo é a da resolução de conflitos através da imposição da força. Mas não, os conflitos nunca se resolvem, senão temporariamente, pela imposição, pela força, pelo acto de guerra. Ficam, ou parece que ficam, em suspensão. E voltam de novo, com energia redobrada, enriquecidos pelo acto de guerra que, na sua utopia, ambicionou ser derradeiro, final. Poderíamos chamar a isto de hiprocrisia não fosse mais apropriado intitulá-lo demência. Era Paulo VI que dizia que a 3ª Guerra Mundial tinha começado no fim da 2ª Guerra Mundial. 5. A ideia de que eu sou mais corajoso quando tenho uma arma na mão não precisa de descritivo nem caracterização. Fala por si mesma. Lembro-me que quando fiz a objecção de consciência não havia estatuto de objecção de consciência. A minha prespectiva era portanto colocar-me a partir dos dezoito anos sobre o tecto de uma ameaça. Ameaça de que não havendo ainda estatuto de objecção de consciência ele, quando viesse, seria pior do que qualquer um que estava entretanto em vigor (há que reconhecê-lo, esse temor acabou por não se concretizar e tivémos um Estatuto que apanhou a boleia do pensamento europeu sobre esta questão. Ameaça de que não pudesse sr trabalhador do Estado ( esta pareceu-me, naquela altura, uma garantia de felicidade!). Ameaça de que pudesse ser preso se, inadvertidamente, num assalto, pudesse ter uma reacção intempestiva ( A história, se te violarem a mãe, parece hoje história de ficção do tempo da avózinha, mas ouvi-a eu, por um sargento com voz castrada, no DRM de Setúbal). Ameaça de todos os aborrecimentos intercalares até ter o estatuto, já que sempre que queria sair do paíz tinha de ir obter uma licença apresentando a guia de marcha autenticada, que não podia apresentar a situação militar resolvida. 5. Não fosse proferida por uma voz que presumo doce, como a da Zazie, não o tivesse escutado num dia propenso ao desamargar do mundo, e seria fortemente revoltante ouvir que esta atitude que, conscientemente me podia ter hipotecado grande parte do meu futuro é a "política da cobardia militante, a apologia da inexistência de dever, a política do nim." Principalmente porque sinto que tomei essa atitude num dos momentos mais bonitos de lucidez, de me sentir devedor à comunidade donde provim, num dos momentos mais afirmativos da minha vida. 6. Já depois de ter escrito este texto chamaste-me a atenção para a diferença entre actos de guerra e os actos de libertação. E sim, independentemente da forma mais ou menos radical com que eu encare a não violência, essa é uma destrinça importante. No entanto, uma das razões para o meu radicalismo neste domínio é a consciência de que a libertação que não se liberta da imposição está no limbo da zona de guerra, pronta a entrar neste ciclo vicioso que vem desde o princípio (ou será fim) do mundo.

quinta-feira, maio 20, 2004

fala de um homem nascido em maio

Amanhã, uma hora depois do dobrar do dia, fará quarenta e duas vezes que assinalei a minha presença neste mundo. Das primeiras, muitas, vezes, fizeram-no por mim. E eu gostava. A minha primeira festa a sério foi na Ada-Pera, ali ao chegar a Mafra. Ou ao sair, claro. Embora a primeira que eu recorde, com a ajuda de uma fotografia esbotada, onde dá para se ver uma bola de borracha com quadrados negros, é do Parque de Santa Clara na Ericeira. Há uma grande espaço de tempo em que sei - há qualquer coisa em mim que me impede de o contradizer - que fiz anos mas que não me recordo bem como. Havia, houve, de certeza, pães de leite com fiambre e queijo, sumol de laranja e de ananás, aquelas laranjinas c que eu tanto adorava, arroz doce ou aletria, bolo de velas, prendas. Mais tarde, uma vez - num encontro internacional de palyworkers - no areal de S. João da Caparica,cantaram-me os parabéns em italiano, polaco, alemão, inglês, francês, espanhol e português e eu toquei ao de leve na magia. Tive ainda mais alguns acontecimentos que eu inscrevo na tal magia circundante. Mas o que de mais importante se passou foi que gradualmente o dia de anos deixou de ser um dia que eu esperava com ansiedade, esperando saboreá-lo desde o primeiro minuto até ao derradeiro e começou a ser um dia em que eu me surpreendo a pensar na vida, na minha vida, na vida do mundo que nestes últimos quarenta e dois anos cresceu comigo. Não lhe quero dar nenhum veredicto moral. Julgá-lo. Não quero fazer que penso e dizer aquelas coisas todas que já sei antes mesmo de começar a pensar. É assim que eu gosto de preparar o meu aniversário. Sentar-me sobre a minha vida e entretecer-me com o tempo que assim se tece. Deixar vir primeiro os instrumentos do pensamento e só depois pensar. Convocar anjos e demónios, fantasmas, monstros, duendes, gente de carne e osso. Fruir essa experiência de não sermos realmente importantes. A nossa importância, a única importância não é chamarmo-nos joaquins, luíses, anas, sofias, carlotas, pedros, cláudias, zés, antónios. A nossa única única importância é que podemos calarmo-nos. Escutar. Fazer disso fala. Embora, dizes e tens mais uma vez razão, é terrível escutar o mundo. O que fazer perante todas estas mortes civis? Vamos manter o sorriso, a esperança nos amanhãs quando a besta é esta alarvidade que ri no espelho que me acorda? Não há como fugir a esta evidência, meus caros amigos. Aquelas bestas que mataram nestas terríveis caçadas dos tempos modernos (chamas a isto moderno, imbecil?) éramos nós, não há como negá-lo. Eram por nossa causa, era para manter a circulação nas artérias e nas vias respiratórias das nossas cidades que eles mataram. Sim, podia ser de outra maneira, de outro modo, d'une autre façon d'être. Mas não foi. Agora só há um caminho. Ou paramos nós antecipadamente as nossas cidades ou seremos tão odientos, tão pouco civis que a nossa sobrevivência se tornará naquilo que estamos a fazer no Médio Oriente: uma questão de retórica.

terça-feira, maio 18, 2004

Mudanças e Avarias.

Pois é. Meti-me a brincar com os novos modelos do Blogger e zás, perdi uma data de informação, como ligações, comentários e estatísticas. Já voltou tudo ao normal mas entretanto o new look foi-se. Havemos de tornar a falar de beleza, blogue.

segunda-feira, maio 17, 2004

Não Esquecer

Ao ler este texto, para lá do comentário que deixei ficar no Tugir, resolvi prolongar a discussão sobre a ideia de que Leonor Beleza "esteve sujeita à mais lamentável das suspeições que ocorreram em 30 anos de Democracia". 1. Aquele que ficou conhecido como o caso dos hemofílicos ou o do plasma contaminado, é inseparável de um modo de agir e ser na política que caracterizou a política cavaquista, nomeadamente a teimosia, a não necessidade de prestar contas, o autismo, a crispação. Poder-se-á escrever tudo sobre este caso, até a peregrina ideia de que assistimos " à mais lamentável das suspeições que ocorreram em 30 anos de Democracia", só não se poderá dizer que Leonor Beleza - ou pela sua lavra o Ministério da Saúde, ou o Governo - se prontificou a esclarecer os portugueses, todos mas muito especialmente aqueles que viram as suas expectativas de vida desfeitas, lamentavelmente desfeitas, do onde, quando, quem, o quê, como e porquê. deste lamentável enredo. 2. E isto não se poderá dizer, escrever, nem sequer pensar porque Leonor Beleza, o Ministério da Saúde, o Governo nunca agiram no pressuposto de que esse esclarecimento era prioritário. Não avaliando a catástrofe que significa para a vida de todos nós - eu, tu, nós, vós eles - que à crónica desconfiança das pessoas sobre a capacidade do Estado se constituir como garante de uma melhor vida e saúde se alie à suspeição de que ele possa ser obreiro da pior doença e morte. 3. Um dos fundamentos da resistente e cívica acção judicial que as vitimas e os seus representantes levaram contra, entre outros, Leonor Beleza, é a de que esse era o único caminho para esclarecer o que se havia passado e responsabilizar o Estado perante aquelas que, como agora se usa dizer, foram as primeiras e principais vitimas de toda a história. 4. Também, graças a essa acção, hoje a política em Portugal é um lugar de maior responsabilidade. Ou pelo menos, de provavel menor impunidade. E não apenas por governantes como, entre outros, Jorge Coelho terem introduzido uma outra forma de entender a questão da responsabilidade política. Também porque acções cívicas como as empreendidas pelos familiares e pelas vitimas do plasma contaminado. 4. Um lugar de maior responsabilidade e de menor impunidade, mas ainda muito imperfeito, ajunte-se. A própria afirmação "à mais lamentável das suspeições que ocorreram em 30 anos de Democracia" só pode ser escrita porque não foi possível obter em julgamento o esclarecimento sobre qual o papel que o Estado e a Ministra tinham tido neste caso. E não o foi também por acção de Leonor Beleza e dos seus advogados, que, naturalmente, aproveitaram bem toda a lentidão processual da justiça portuguesa. Donde resulta que Leonor Beleza - e os seus representantes - é uma das principais responsáveis pela falta de apuramento dos factos e por uma das mais lamentáveis suspeições que ocorreram em 30 anos de democracia. 5. Porque é que Leonor Beleza o fez? Entendimento miserabilista da responsabilidade politica? Ou de um compreensível e notável desejo de salvar a pele? Não sei, o que para mim é inquestionável é que agiu mais na prossecução dos seus direitos cívicos do que na defesa da política como forma de trabalhar para o bem comum. 6. De uma coisa não haja alguma dúvida: "uma das mais lamentáveis suspeições que ocorreram em 30 anos de democracia" não tem como principal vitima Leonor Beleza. O - indescritivel- acordão do Tribunal que decretou a prescrição do caso, confirmando assim a eternização da suspeição, serviu os interesses da estratégia da defesa de Leonor Beleza e não os dos mortos e dos vivos violentamente agrafados a este caso em má hora arquivado.

sexta-feira, maio 14, 2004

Podem hoje as democracias...

A Natureza do Mal, através do Luís, já teve o ensejo de desmontar a argumentação façanhuda de Pacheco Pereira, que agora se apresenta como Vice-Presidente do Parlamento Europeu. O assunto, a forma como é abordada, é mais grave do que parece. Aproveito por isso para repisar algumas questões. 1. Lembro-me de bastante tempo antes da invasão do Afeganistão, ter lido de Adriano Moreira a afirmação de que " a Europa estava carecida de líderes que, como Churchill, se distinguissem por falar a verdade, custasse o que custasse". Hanna Arendt, reflectindo sobre a relação entre verdade e política escreveu: “...enquanto se pode ir até recusar a pergunta de se a vida inteira valeria a pena ser vivida num mundo privado de noções como a justiça e a liberdade, o mesmo, estranhamente, não é possível relativamente à ideia, na aparência muito menos política, de verdade. O que está em causa é a sobrevivência, a perseverança na existência, e nenhum mundo humano destinado a durar mais tempo que a breve vida dos mortais nele, poderá alguma vez sobreviver sem homens que queiram fazer o que Heródoto foi o primeiro a empreender conscientemente." 2. "É no plano político que a guerra está a ser perdida. Que as guerras se perdem politicamente é um truísmo que por si só não adianta nada à discussão." - é um dos argumentos-maravilha de Pacheco Pereira. Nem vale a pena contra argumentar, tal a sorte de iluminárias, como Hitler e Kaúlza de Arriaga, que Pacheco traz à colação. Até porque Pacheco Pereira lá tem a sua razão quando afirma que há um problema entre as democracias e as guerras. Há uns tempos muito largos, em "Nascemos Culpados", publicado na Zona NON, também eu me dava conta dessa incomodidade: " Sabemo-lo, é difícil perceber o dilema do nosso mundo com o advento de uma propaganda que desonra o espírito das democracias de que tanto nos ufanamos.../..Melhor seria que se, para poderem projectar sobre o futuro a vossa sobrevivência, têm mesmo de matar o Outro, melhor seria que o honrassem com a verdade sobre a sua própria morte. Explicando-lhe que o problema é aquele lugar onde a terra os prodigalizou com um maldito sangue negro que se tornou para a nossa civilização tão vital como o outro que agora, fazendo contas à nossa sobrevivência, lhes pretendemos roubar. .../... A mentira, mesmo fenecendo de longevidade e velhice, tem perna curta e há um dia, que nem perna tem." 3. Ou como diz o Luís, e vale a pena repetir esta ideia: "Se as democracias perdem as guerras é porque na ecologia comunicacional, além dos generais e dos analistas de serviço, subsiste, orgulho nosso, uma tradição de jornalismo independente. Se apesar do domínio asfixiante sobre as televisões e os jornais, os governos não conseguem levar a cabo políticas impopulares de forma prolongada, então ainda bem, talvez ainda consigamos derrotar os islamistas, os ditadores, os terroristas e quem sabe, um dia, no Parlamento da Europa ter gente nem boa nem má, mas que não mente para fazer guerras de agressão, homens não necessariamente certos nem errados com quem se pode falar, entendermo-nos ou não". 4. As democracias têm de facto inúmeros problemas, mas um deles não será certamente o de responsabilizarem aqueles que mentem à comunidade. "Eles mentem, eles perdem", por mais irritante que seja um pequeno grupúsculo politico a dizê-lo ao Sr. Vice-Presidente do Parlamento Europeu, é uma daquelas ideias que nos restituem uma certa confiança na política, no futuro.

quinta-feira, maio 13, 2004

Sempre a Tugir

Voltei à companhia deste blog , cujo contacto tinha perdido, desde esta voz. Já várias vezes tinha tentado mas como demorava tanto acabava por desistir. Deste vez fui mais persistente. Deixei a janela aberta e passado algum tempo já escutava aquele tugido persistente do Luís Novaes Tito. Ainda bem.

Power in the darkness

Um pouco em contramão com a entrada anterior, muitas vezes quando me acode o problema do poder na minha vida, também me acorre este verso, creio que de "Time", dos Pink Floyd. E assomou-me agora, enquanto entrava neste teatro, para retomar o meu trabalho, depois do almoço. Talvez pela escuridão do palco, luz que se rasga antes de entrar no território do veludo dos cortinados e das carpetes que filtram as sonoridades, protegendo a sala principal do rebuliço, do formigueiro que é hoje, um teatro. 1. Até chegar aqui tive de atravessar algumas zonas menos claras, mais confusas, mais ambíguas, pelo menos para alguém que tem uma forte costela rebelde, uma entrincada cultura anti-poder. Nomeadamente quando trabalhei como adjunto aqui do Director do Teatro, entre 1997 e o Verão de 1998. Ou quando, de uma forma institucional, durante seis meses, em substituição do meu colega Fernando Augusto - entretanto falecido- assumi a chefia da Divisão Cultural do Instituto. Ou finalmente, numa combinação subtil entre formalidade e informalidade, quando coordenei uma Equipa de Projecto para a Formação. 2. São experiências que - para além daquele caudal de aprendizagem que tornam impraticável o arrenego dos dias vencidos - enquanto exercício do mando, não me deixaram saudades. Que reforçaram a minha convicção de que se o ser humano tem alguma mais valia neste pantanoso e multimilionésimo movimento molecular que é a vida é o de poder vir a resolver de uma forma combinatória entre razão e emoção, o convívio do principio da ordem e da disciplina necessárias à reprodução e perpetuação do nosso mundo com este outro, que nos é dado pela prática desse mesmo mundo, a de que a vida só o é verdadeiramente enquanto aventura entre pares, entre iguais. 3. As questões da liderança só fazem sentido se vistas assim, no plano da relação entre iguais, entre pares. Quando reflicto sobre a minha experiência passada aqui há quase seis anos, verifico que não é só a reconstituição de mim próprio que me causa algum embaraço, também a daqueles que me cercaram. O mundo que resulta da configuração do mando, do obedecer, pode até ter condições de necessidade, mas é muito, muito pobre, tanto de um lado, como do outro. Nem me interessa muito perceber onde é que isso foi mais ou menos, sou radical nisso, o mando e o obedecimento, desmerecem-nos. 4. "Trincamos o caroço, mas já não saboreamos a cereja", é um verso de Jorge Palma que trago sempre a tiracolo para ocasiões como esta. Escrevi há uns anos esta peça que tem também a ver com este problema. E mais recentemente, ao encontrar numa livraria o Discurso da Servidão Involuntária tive um momento de revelação daquilo que eu andava à procura. Há, existe vida, existência provável para lá desta experiência equívoca do mando e do obedecimento. 5. Dizer que o mundo sem mando seria o caos, é não reconhecer que é o mando que instala o caos no mundo. Um caos mais profundo do que aquele que a mão firme consegue suster. Ou pensa que consegue suster. Porque estamos diante de um caos não derrímivel. Natural, quer dizer, necessário á natureza do mundo. 6. Descobri entretanto que tenho algumas marcas de personalidade que não me tornam um possível candidato a chefe. Não suporto o frio, a escuridão de um amor, de um afecto que possa ser assaltado em todos os seus momentos pela insegurança, pela dúvida. Estes rostos felizes há minha passagem serão pele e face ou máscaras de medo e reverência? É aqui, neste lugar de dor do mal-amado que se constrói o desprezo que sustém a usura e a prepotência. Também a ansiedade. Dizem-me alguns que eu era frio, autoritário, não aceitando aquilo que eu interpretaria como sinais de uma falta de empenhamento. Que exigia dos outros aquilo que exigia de mim mesmo. Contam-me casos que me fazem corar de vergonha. Nem me interessa pensar que era a minha primeira experiência de mando efectivo. Estou e estarei longe desse lugar onde o exercício do poder desgasta e corrompe. Como Kaspar, de Peter Handle, direi, "lembro-me de alguém que em tempos existiu". Fui à terra do mando e do obedecimento e regressei, não incólume, intacto, mas regressei. 7. O exercício do mando e do obedecimento tem esta singularidade: sentimo-nos frequentemente impotentes para melhorar efectivamente a vida dos nossos semelhantes, descobrimos, muitas vezes tarde de mais, que o único poder efectivo que temos, tivémos, foi o de, involuntaria ou voluntariamente, massacrar a vida de alguns dos nossos, na mesma, semelhantes. 8. Vivamos como e para um mundo de homens e mulheres livres, esse o maior desejo que podemos ambicionar na construção da nossa ideia de humanidade.

Em terras de França...

No outro dia um comentário onde havia uma frase em inglês que me fez andar ali a patinar sobre o seu real significado, levou-me longe. Pertenço a uma geração, provavelmente a última, de francófonos. E aliás, só pertenço a ela porque fiquei deste lado, a ver claramente o momento de fractura. Tal e qual como é claro o momento em que o rio se cola com o mar, também para mim é nítido o lugar onde eu fiquei agarrado a minha imberbe francofonia. Na altura em que os discos contrabandeavam o linguarejar english eu agarrava-me aos meus Regginani, Montand, Greco, Aznavour, Moustaki, Trenet, Piaf, Ferré, o grande, grande Leo Ferré, Gainsbourg. O meu irmão mais velho já não, embora mantenha essa relação com a lingua francesa, navega também bem na lingua inglesa. Cat Stevens, Doors, Pink Floid, Rick Wackeman, Procol Harum, Genesis, com letras escitas em caderninhos de argolas e recitadas nas noites de verão cá em baixo, na entrada do prédio, magotes de adolescentes num fervor quase mistíco. Eu não, por alguma razão que nunca haverei de perceber exactamente, a música para mim era esse dançar, vibrar, reverberar com as letras, com as palavras, com os sentidos. Só comecei a ter raiva de não saber inglês quando descobri Joan Baez e Bob Dylan. Ou mais tarde, Paul Simon, Art Garfunkel. Mas, é espantoso a ideia que temos do tempo, do fosso que ele é, nessa altura pareceu-me que já era muito tarde. Demasiado tarde. A verdade é que a litetratura ocupava em mim esse lugar que, na adolescência, reservamos à música. Só comprei o meu primeiro disco já tinha barba, rala, é certo, mas mais do que penugem. E foi do Chico Buarque. Em contrapartida aos quinze anos já tinha devorado os grandes nomes da literatura mundial. Não só aqueles que se assomavam da minha estante, também aqueles que comecei a adquirir com a minha semanada, já aqui falei disso. Dentro deles, Hemingway, com Paris é uma Festa e Somerset Maughan, com vários, mas principalmente Um Gosto e Seis Vinténs, engajaram-me completamente com o mundo francófono. Sabia de cor e salteado - num conhecimento robustecido pela mais vigorosa fantasia, o Quartier Latin era uma espécie de Alfama com varinas, pescadores, lobos do mar, artistas, meretrizes, homens e mulheres de ocasião -as ruas que circundavam a praça de Montmarte, o Boulevard Saint Michelle.A este lado mais telúrico, mais emocional, juntava-se o político e a fiolosofia. França como um grande baluarte - que antiga que é esta palavra, baluarte!- da resistência ao nazismo ainda hoje me fala. Há uns tempos passei nos Alpes e ali, onde em cada planalto está gravada uma memória da resistência, onde até as árvores parecem sussurar como se nos contassem algo que o tempo não escondeu, e senti claramente essa força, essa narração.

terça-feira, maio 11, 2004

A Mulher da Burka Invísivel

Faites Vous-Même Votre Malheur, é o livro que a Leonor, a Leonor Areal me trouxe ontem. De Paul Watzlawick. Ela tinha lido as minhas histórias sobre o 25 de Abril em calções e como numa delas eu falava deste autor pensou que eu gostaria de o ler. E estou de facto a adorar. Dá-me alguma esperança, a mim e a todos os leitores, este livro. Afinal, a infelicidade é possível. Está ao nosso alcance. Teremos de a merecer, sem dúvida. De a conquistar. Mas existe. É possivel. Está ao alcance de uma mão. Não teremos de morrer todos empanturrados de felicidade malsã. Alguns de nós poderão, arduamente, conquistar esse estado de insuportabilidade. A ideia de insuportável ocorreu-me quando eu estava sentado na segunda fila de mesas da Brasileira. Segurava na mão esquerda o livro de Paul Watzlawick e com a direita mexia ora na melena, ora na chávena. No rebordo da chávena. Gosto de percorrer o dedo pelo rebordo da chávena num misto de sensualidade em que, se tu te proveres de alguma imaginação e fantasia, poderás imaginar que eu tenho tanto sex-appeal como o homem da martini. E foi quando eu estava com estes jogos pré-eróticos dissimulados, que o insuportável surgiu. Através daquela mulher que trazia uma burka invisivel. E na cabeça uma boina de lã vermelha, vermelho também era o casaco, a saia, a camisola, o cinto não, o cinto era de argolas prateadas, as meias, os sapatos, a correia do relógio, a écharpe,a própria carteira e cigarreira, tudo, numa gradação de cores e tons é certo, tudo era vermelho. Menos uma pasta, uma pasta preta e uma mala, também preta. Reparei nela logo que entrou. Trazia o pescoço dobrado sobre a sua garganta, com a pasta tapando ostensivamente a cara, principalmente a boca. Foi para a primeira cadeira junto à parede da primeira fila de mesas.Mesmo sendo complicada a operação, estavam sentadas algumas pessoas, nunca baixou a pasta da boca, o que lhe tirava mobilidade. Enrolou-se em si mesma para se poder sentar sem perder o controlo da ocultação da boca que tão zelosamente protegia. Colocou a mala e a pasta em cima da mesa, como se erguesse uma muralha. Ostensivamente colocava a mão a tapar a boca, o polegar encostado à bochecha esquerda, os outros quatro dedos, bem unidos, descrevendo movimentos nervosos de translação entre o olho e o queixo. Olhei-a, o menos ostensivamente que podia, o menos intimidatoriamente que consegui, o mais verdadeiramente que me foi dado olhar. E foi assim durante vinte minutos mais ou menos. Por vezes baixava a mão, para comer, para levar a comida a boca, e até, surpreendentemente, para colocar o seu queixo na palma da sua mão, libertando-a, com jovialidade recuperada, deste jogo de esconde-esconde. A sua insuportabilidade estava cheia de sofrimento, pelo menos era assim que a via, coberta de uma burka invisível. Aquela mulher, ligeiramente gorda, com um ar toque e foge árabe, indiano, poderá ser tudo - no ínicio, julgando ver Genoveva Faísca ao balcão, até pensei que era um happening, uma performance - mas eu imagina-la-ei como uma mulher que na Lisboa de 2004, no Chiado da nossa Lisboa de 2004, se colocou no lugar das mulheres, de todas as mulheres obrigatoriamente escondidas atrás de uma burka para sofrer ao limite do insuportável com a dor que as atravessa. Era por isso que enquanto a empregada da Brasileira a olhava com um misto de impaciência, estranheza e ironia, eu, por meu lado, lhe devolvi toda a ternura que um olhar, que um simples olhar pode contrabandear.

O que se poderá esperar de nós?

Procuro um deserto de almas compativel com esta não-dor. Alguéns que não aceitem o desperdício como natural. Alguéns que acreditem naquilo em que eu já não acredito e que me levem pela mão por dentro dessa querença. Procuro, com o desespero dos que há muito deixaram de esperar, de crer, alguéns que me façam comungar, assim, como há muito, na Basílica de Mafra, com a boca cheia de hóstia e de crença num mundo mais fraterno, mais justo, mais misericordioso, eu comungava mas agora já não o pão, o corpo, sim, o mundo. O mundo. Almejo o mundo desde que nasci. Já me inscrevi num partido político, o único, reconheço, antes tinha sido sócio do sporting e do benfica, militante da uec, já me filiei em todas as associações que se me apresentaram pela frente, em todas as redes que me assobiaram, tenho orgasmos múltiplos com aqueles grupos que não-são-bem organizações-mas-gente-diferente-que-não-tá-para-isso,-isso-o-quê,-pergunto-não-te-rales-isso, criei um, dois, três blogs, dois, três sites, desconjuntei-me no icq, nos chats da uol, trabalhei com, para, pelos outros, mas tudo isso, que não foi nada, rigorosamente nada, nicles, nestum, pevide, nérpia, embora seja tudo, tudo o que até agora pude fazer com este sacana do livre-arbítrio, um tudo nada que só aumentou a minha incomunidade, o meu desejo de sair, de me espatifar, esborrachar contra o muro, o meu anseio de Berlim, a minha sensação de que a minha dívida - aquilo que o mundo de mim poderia esperar se a tal eu pudesse corresponder- é como a externa dos países do terceiro, do quarto, do quinto mundo, uma lua em quarto minguante, maré vaza, cenoura presa nos meus arreios, por mais que corra há minha frente sempre, cada vez mais, esse vazio, essa não-dor, esse para lá do poema, da loa, do aconchego, da mão fácil ou díficil, sim, desarredem nazarenos, tende misericórdia de vós antes de mim ou comigo, o pensamento não chora, não se baba, não soluça, não carece senão de desafecto, cada vez mais desafecto, um dia o desafecto final, um mísero mas entrelaçante, comovente instante de luz, uma faísca possivelmente, o que eu queria era entrever na nossa vida a vida que da nossa vida é possível antever, tem de ser possível, é com ela que ainda me permito pensar que a tirania, a estupidez, a violência não são lugares eméritos, não são nem lugares, estão aí, por aí, não são uma fatalidade, ou pelo menos que é possível existir como se o não fossem, como se um dia claro, raiado pelo sol, beijado pelas águas do rio mais rio de toda a minha vida, um dia solidário, um dia em que tu, ele, vós sejam eu, pelo menos para mim, em que a tua morte morra na minha pele, na minha carne, na minha alma, e que isso seja a contramão do poema, em que a tua, a dele, a vossa morte viva na minha morte, em que o Outro seja um passo para a loucura, a loucura de com minúcia, com exactidão, com paciência infinda, desde a porta da minha casa até ao regresso à mesma porta, certamente pela madrugada infame, dizer que todos os tus, os eles, os vós, são eus, eus dependurados na minha consciência, nas minhas marcas, ouvindo-os, escutando-os, tocando-lhes se for preciso, quando era miudo queria ser missionário, antes do Super-Homem os meus super-heróis foram esses homens sem rosto que viviam numa outra África, terra da fome, da peste, da lepra, os missionários que me eram trazidos pela Audácia, revista cristã para miudos de palmo e meio,também eu mãe, também eu quero ser missionário, nos campos de febre, nos campos da fome, procuro alguéns compatíveis com este estilhaçar brando, sereno que é o avivar desta pergunta matinal com que nos devemos uns aos outros, o que é possível esperar de nós, o que é possível esperar de nós irmãos, camaradas, companheiros e amigos, putas e pederastas, chulos e campónios, pedófilos, teófilos, cabrões e vindouros, fenestrados, diagnosticados, sinaleiros e bombeiros, juízes, deputados da nação, artistas, cançonetistas, barbeiros, mestre-escolas, fiéis de armazém, guarda-freios, baptizados, algaliados, encurralados, aleijados, aleijados de guerra como chamou um dia Miguel de Unamuno ao general milan astray, neófitos, cabrões de neófitos, que à falta duma humanidade prevalecente se tentam deuses decidindo na grande mesa censória das suas consciências altaneiras, garganeiras,quem vive, quem morre, aleijados desta guerra sem quartel que é respirar, respirar o mesmo ar, respirar brando e suave de criancinha, respirar a dúvida, a inquietação, o que será justo esperar de nós, de nós sem nós, sem ateios, nem amarras, sem sequer pontos de amarração. O que se poderá esperar de nós em nós?, nessa ideia antiquíssima de comunidade, de lugar onde se está, disseste, um teatro, aceitemos por agora, provisoriamente, esse lugar de nós é um teatro despido de bambolinas e telões, por cima de nós uma teia, entrelaçada, aceitemos por agora, provisoriamente, esse lugar de nós é um palco aberto à expressão, à voz.

Deus Sol

Uma das reliquias da minha juventude foi um calhamaço grosso, de história, subtraído à estante dos meus pais, depois de ter descoberto que tinha uma versão completa do Hino ao Deus Sol. Vão-se as memórias, a própria memória vai de abalada, mas fica ainda, encrustado no de dentro da pele, esse instante de revelação, de ingenuidade, em que nos perguntámos: "- Como é que eu pude chegar aqui sem ter lido, cantado e saboreado este tremendo louvor à vida e de fulgor?"

Campo do Semeador

sentindo a falta do poeta, fui procurar o amigo, para o xingar, para o amaldiçoar.encontrei-o a meio de uma aula, hei-de voltar, hás-de voltar...

segunda-feira, maio 10, 2004

Faites Vou-Même Votre Malheur

"On peut toujours reprocher son manque d'amour à un partenaire, attribuer les pires intentions à un patron ou mettre sa propre mauvaise humeur sur le compte du temps qu'il fait - mais comment s'y prendre pour fair de soi-même son pire enemi?" P.Watzlawick

sexta-feira, maio 07, 2004

Para que serve um de nós, se não for eu mesmo?

É este o texto que quero escrever. Com sequelas de uma conversa vadiando entre blogues. Com uma picada sobre um trabalho de teatro. Mas agora não. Tenho de me pôr a andar, vite, vite. Mais um semana de pai. Mas antes, JOSÉ MÁRIO BRANCO. Porque, há vida para além dos blogues. Segunda feira cá estaremos. Para dizer o que mesmo assim, sobrevive, enquanto dizível.

quinta-feira, maio 06, 2004

230

No Arame é um dos blogs mais interessantes que andam por aqui. Alexandre Monteiro (AM), o seu autor mostra-se inovador, inventivo, inteligente, culto, possuidor de uma escrita sedutora, debruçando-se as mais das vezes sobre temas originais. No entanto, porque tudo acontece no arame, AM estatelou-se num comentário que deixou a uma entrada de A Natureza do Mal, intitulada 230. Escreveu AM " ainda bem que se matou. é um parasita marginal a menos na sociedade". O autor da entrada, certamente tão atónito como todos aqueles que nos habituámos a admirar a escrita do Alexandre, apenas perguntou:"Como existe infelizmente essa opinião e eu não te conheço pessoalmente nem li nunca opiniões tuas sobre o tema era importante para mim saber se o teu comentário é irónico ou convicto." AM, habituado que está a fazer do Arame a sua própria casa não desarmou. Depois de alinhavar duas ou três ideias mal cozidas sobre o livre-arbítrio e o dever de participação social, respondeu:"não me peçam que chore lágrimas de hipocrisia quando párias, violadores, ladrões, assassinos, gente marginal que vive de prejudicar os outros, de os roubar, de os assaltar, de os violar, de os matar, de os mutilar, morre.." Mas para que não tenhamos algumas dúvidas sobre o seu grau de convicção, alarga o seu grito necrófito dizendo " que morram. e quanto mais cedo melhor." Se Alexandre Monteiro fosse um idiota encartado, daqueles que uma pessoa olha, cheira e desde logo aì assinala a presença de cabresto, eu tinha saído rapidamente da caixa de comentários da Natureza do Mal e tinha-me evaporado logo ali. Tenho um pacto contra a imbecilidade do mundo não contra aqueles que a praticam. Há muita gente que não sabe distinguir entre uma coisa e outra, mas a verdade é que são duas lutas fraticidas. Tanto que há tantos que partem nas cruzadas contra a imbecilidade e que, por tercejarem desvairadamente contra os imbecis, acabam por mimetizar os padrões de comportamento destes. Mas não é o caso. AM é inteligente e por isso, quem o ouvir, pode não perceber a estupidez em que incorreu ao dizer umas coisas que independentemente de nos poderem soar mais ou menos bem são uma opinião (e aqui não se incorre em delito dela). O que é cretino, vil, como só a estupidez e a imbecilidade o podem ser, é que apenas através de um número, o 230, AM tenha conseguido ver tanta coisa sobre um tipo que apenas sabemos, aos 27 anos se suicidou, diz aqui a prisão, foi suicidado, dizem os outros presos. O mais triste e lamentável não é que AM pense isso. É que a DGSP tenha vindo desde logo dizer que o preso 230, de 27 anos, tinha "graves problemas de toxicodependência e estava sozinho na cela disciplinar quando se enforcou com a coberta do colchão". [ É perfeitamente absurda e freudiana esta declaração. Se se enforcou tinha de estar sózinho, porque se não seria morte-assistida-numa-cela-de-prisão, conceito novo e intermédio entre o suícidio e a eutanásia. Ou seja, a DGSP, desvalorizando as suspeitas sobre as recorrências de suícidios naquele estabelecimento hospitalar, assume desde logo, sem investigação, a versão dos serviços prisionais locais. ] É certo que os suícidios vão para o Ministério Público. E aí, se eventualmente o Ministério Público vier a encontrar matéria que prove as piores acusações dos outros detidos, os Serviços Prisionais locais terão na sua versão uma prática de encobrimento de crime. E a DGSP, pelo menos no plano ético - porque deve ser quixotesco falar de serviço público nas prisões, pelo menos neste século - será cumplice com a prática de encobrimento de crime. Mas isso seria num outro país. Onde não houvesse a cumplicidade cívica de aceitar que um número - desde que acompanhado de algumas pestes e maleitas sociais - pode dizer tudo sobre a pessoa que dele se escapou.

Terra

O tempo tornou-te ausente de ambição , dizes-me, quando me vês a tentar desenvencilhar-me do fraque que só usei no meu casamento, do smoking que nunca usei e que comprei nas praias de Puket, na Tailândia - uma bagatela também porque feito por crianças, é preciso que o diga, com a vergonha necessária - dos fatos, das gravatas, dos apetrechos de um tipo conforme. E não é verdade. Muito antes pelo contrário, como também gosto de te ouvir dizer. Sou hoje senhor de uma ambição desmedida. .

Seis meses, ontem

Fez ontem seis meses exactos que na Eterno Retorno o António Torrado me deu um cigarro. Fumei-o como se fosse o último, lembro-me. Ontem era quarta feira e havia reunião dos Nicotinodependentes Anónimos, grupo simpático e prazenteiro onde, sem dar por isso, reforcei a minha convicção de não fumador. A última vez que lá fui deram-me a chapinha que assinala os 120 dias de abstinência. Devia lá ter ido ontem receber a dos 180 e a ovação final.

quarta-feira, maio 05, 2004

Terra

não há nada de original no desejo de uma escrita fecunda. nem tão pouco na sua expressão. o que é novo, e não quer dizer que por isso notável, é apenas este projecto de, entre um texto e outro, entre um texto e outro que provavelmente nem habitarão neste blogue, dar expressão pública a um existir. fazêmo-lo porquê? narciso em nós? espirito militante investindo numa participação cívica? incapacidade de pensar e por isso, com esta presença totalitária subtraímos, aparentemente, a necessidade de pensamento ao real? incapacidade de nos desligarmos, de nos desconectarmos? tantas vezes se berrou contra o discurso tecnológico e tão poucas vezes se compreendeu, analisou, observou, que a força do dispositivo máquina e da técnica não se verifica tanto pela usurpação de códigos humanos para o genoma da robótica, mais pela incorporação na linguagem humana de padrões de comportamento inumanos, tecnológicos. como será o mundo não apenas quando as máquinas se parecerem connosco, mas essencialmente, quando nós nos assemelharmos totalmente com elas?

segunda-feira, maio 03, 2004

Terra

apetece-me fecundar a escrita. gostaria de poder fazê-lo. não para que a escrita que daí resultasse pudesse ser fecunda. estou-me borrifando para isso. apenas porque ao longo do tempo, tal e qual num labirinto, fui construindo aberturas que me fechavam num gheto. e essas portas e janelas são palavras, ditas, ouvidas, lidas ou escritas, fecundando a minha vida. o desejo de fecundar vem daí, penso. e agora talvez seja muito tarde para voltar a atrás. que fique então assim o mais claro que eu conseguir, este desejo de fecundar a escrita não é mais do que uma expressão intima desse outro desejo de chão fértil que me sacode enquanto vivo. o que eu queria mesmo era poder fecundar a minha vida.

O Peter Pan pequeno

Estreei-me agora como pai de fim de semana. De sexta a domingo, a tempo de o libertar para o almoço do dia da mãe. Quando o larguei senti finalmente o meu corpo pesado, cansado. Tinha estado de alerta vigilante todas estas quase quarenta e oito horas. Nunca pensei que pudesse ser tão importante para ele passar a dormir cá em casa. Ter uma nova casa, para juntar à outra, onde habita com a mãe. Várias vezes o surpreendi a dizer " A mãe vai ficar muito admirada!", isto quer falasse de dormir sem chucha nem óó lavadinho, de beber o leite antes de adormecer sem biberon, de irmos comer a sobremesa para o sofá ou até, de fazer xixi à homem. Nunca pensei que pudesse ser tão importante para mim. Houve momentos de birra, claro. Em que as coisas não correrram bem. Teve direito a dois berros, o moço. Mas senti-me tão prazenteiramente só com ele, como se fossemos os dois gaiatos, misturados na autenticidade desse prazer de ficar,ou a ver as estrelas da janela do quarto, ou o rio, ou o castelo... "- O Castelo dos maus, Pai? - Não. Não há maus ali no Castelo, Pedro. - Então vive um pincepe ou uma pincesa. - Não vive não. O castelo está vazio. - Os castelos ou têm pincepes e pincesas ou maus, já disse." Não insisto. Já tu tinhas pegado na tua espada feita com balões e dado duas cutiladas no ar. - Eu sou o Peter Pan G'ande e o Pai é o Peter Pan Pequeno! 'Tá bem? - digo-lhe que sim. - Isto é tudo muito divertido, pai."